A crise dos regimes democráticos chegou a Portugal com força. Os sinais de ‘fim de tempo’ são, hoje, mais do que evidentes. A sociedade está dividida. As corporações defendem os seus privilégios sem atenção ao todo, os governantes cedem aos interesses das corporações com mais poder reivindicativo e, assim, são criadas situações de clara injustiça, que a prazo desaguam em conflitualidade social.
O ambiente político também não anda bom. Na última semana, o principal tema de discórdia era saber se os deputados podem usar de discursos xenófobos, racistas ou de ódio no Parlamento. Logo de seguida, soube-se que é recorrente a prática de bullying nos corredores do hemiciclo português e a utilização de ofensas graves, umas racistas, outras a respeito da orientação sexual de deputadas.
O ‘mau hálito político’ que se sente passa para a sociedade. Escrevi, há umas semanas, que a normalização do discurso de ódio faz-nos entrar numa espiral de violência. Esta passa, naturalmente, para a sociedade. É o ‘novo normal’. Para agravar tudo isto, este ambiente dá-se num momento no qual as instituições judiciais passam por uma profunda crise de legitimidade: a falta de bom senso também nos trouxe até aqui.
Giuseppe Tomasi di Lampedusa diria, cinicamente como no Leopardo, que «se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude». Todavia, a decadência do nosso regime não se ultrapassa com cinismo, mas com participação dos cidadãos, particularmente das elites.
Há algumas semanas, aquando do lançamento do 1.º volume das Obras completas do Marquês de Pombal, em Oeiras, depois de ouvir o Prof. José Eduardo Franco dizer qualquer coisa como «são os tempos difíceis que criam os grandes homens», questionei o Prof. Viriato Soromenho Marques sobre a possibilidade de haver líderes como o Marquês nos dias de hoje.
Nunca Portugal teve tanta ‘inteligência’ e conhecimento disponível. Nunca teve gente tão bem formada, e poucas vezes foi governado sem fazer recurso a essa ‘inteligência’. A questão diz respeito, claro, às condições para que as pessoas tenham atividade política.
Sabemos que os partidos não envolvem quem se aproxima, particularmente quando sentem que há qualidade: já perceberam que ‘a boa moeda expulsa a má moeda’, pelo que, preventivamente, ‘a boa moeda fica à porta’.
O novo ator Chega tem menos pruridos do que os outros partidos: aceita a boa e a má moeda. Até há pouco tempo a boa moeda evitava conspurcar-se. Com a perspetiva de poder, já há alguma boa moeda que, por um prato de lentilhas, parece não se importar em ‘infetar-se da doença’.
A evolução dos acontecimentos parece implicar uma renovação do sistema político-partidário português. Apesar do aumento das opções, haverá certamente um número crescente de portugueses moderados que não se revêm nos partidos atuais. A votação de protesto no Chega não implica que haja 20% de eleitores racistas ou radicais. Muitos desses eleitores estão apenas zangados e sem opção construtiva, que sintam possa alterar o ‘estado de coisas’.
Correndo o risco de ser repetitivo, e uma vez que os partidos do regime não se reformam, não há outra solução que não a sociedade civil tomar nas mãos o futuro do país. Ou, caso não o faça, o vazio acabará ocupado por quem vende soluções fáceis para problemas complexos.
O problema é que, nessas circunstâncias, não estaremos mais a discutir os problemas, até porque não poderemos discutir, apenas concordar.