Abordei recentemente o tema da liberdade de expressão a propósito da agitação em alguns campi universitários norte-americanos. Volto ao tema, motivado pela polémica em torno do direito a proferir na Assembleia da República (AR) afirmações consideradas ofensivas.
Para abrir, esclareço uma coisa. Considerar que os turcos são pouco trabalhadores como fez André Ventura é de mau-gosto, injusto para os herdeiros de uma civilização brilhante e cidadãos de uma grande potência regional, e racista porque estereotipa todo um povo. Nada de estranho num deputado que já nos habituou a repetir preconceitos tão básicos que apenas se costumavam pronunciar sem vergonha em conversas de taberna.
Aguiar-Branco, o presidente da AR, esteve exemplarmente bem na proteção do direito à alarvidade. Pode argumentar-se com o regimento da AR, mas o essencial foi a defesa cristalina da liberdade de expressão enquanto valor fundador da democracia. Pode dizer-se que existem raças? Pode. Pode dizer-se que uma raça é burra? Pode. Pode dizer-se que uma etnia vive à custa dos contribuintes? Pode. Pode ter-se um discurso homofóbico? Pode. Pode defender-se o bombardeamento de Gaza? Pode. Pode defender-se uma Palestina livre do Jordão ao mar? Pode. Pode dizer-se que a Ucrânia é parte da Rússia? Pode. Pode condenar-se a liberdade de expressão? Pode. A resposta a todos estas exemplos é ‘sim, pode-se’, enquanto se tratarem apenas de palavras e não de incitamentos a atos que constituam uma ameaça plausível de violar a Lei. Estes, sim, são reprimíveis. Para citar uma fonte insuspeita para a esquerda woke, o académico Noam Chomsky, «Se não acreditamos na liberdade de expressão para as pessoas que desprezamos, então não acreditamos nela, ponto». Mas em matéria de citações ninguém é tão certeiro como o editor pornográfico Larry Flint, «Se não vamos ofender ninguém, não precisamos da proteção da [Constituição]».
Para além do defesa genérica e abstrata da liberdade de expressão, Aguiar-Branco apelou ao mais fundamental dos princípios dos liberais, que é o da modéstia. Os liberais são-no, antes de tudo, por modéstia; por se recusarem a impor a sua mundividência aos outros. Quem é ele para decidir o que é ofensivo e quem se deve sentir ofendido. Quem é ele para censurar o que é ou não é dito? Ao fazê-lo traça bem a diferença entre o que é o perfil moderado de um liberal e a arrogância autoritária do seu antecessor no cargo de presidente da AR.
Na sequência de uma série de incidentes de cancelamento, a Universidade de Chicago elaborou há dez anos uma carta em que articulou o seu compromisso para com o debate livre, plural, robusto e sem baias entre todos os membros da comunidade académica. Todos os fora onde o debate de ideias é vital deviam revisitar estes princípios. Brevemente, a Carta enfatiza a liberdade de expressão como um elemento central da cultura universitária (e democrática, acrescento eu) e esclarece [esta á a parte mais relevante para o caso que discutimos] que a preservação da civilidade e respeito mútuo não são justificação para impedir a discussão de ideias mesmo daquelas que a maioria considera ofensivas, imorais ou simplesmente erradas. Esses fora não julgam ideias; quem os gere ou coordena (as autoridades académicas ou a presidência do Parlamento) deve reger-se por aquilo a que a Carta chama ‘a neutralidade de ponto de vista’ para assegurar que nenhum é silenciado.