Beethoven e a União Europeia

A União Europeia tornou-se um império de burocracia com capital em Bruxelas.

Recentemente celebrou-se mais um dia da Europa, este ano com a particularidade de estarmos em tempo de preparação para mais umas eleições europeias. O 9 de maio de 1950 ficaria para sempre marcado pelo lançamento da Declaração Schuman que pretendia relançar toda a Europa no pós-segunda guerra mundial. Pessoalmente, apesar de ser um confesso admirador de Robert Schuman e de todos aqueles que fundaram a União Europeia, acho abusiva a ideia de que se pode minimizar a palavra Europa na estrita realidade do projeto europeu. Até diria mais, acho extremamente redutor. Certamente, antes do 9 de maio de 1950, poderíamos considerar o 7 de outubro de 1571 com a Batalha de Lepanto e a derrota do Império Otomano pela Liga Santa. Ou então, o dia da Catedral de Notre Dame ou da estreia de uma das Sinfonias de Mozart. Qualquer um destes dias representaria melhor a ideia de Europa do que propriamente aquele 9 de maio.

Nem a história europeia se cinge à União Europeia, nem a União Europeia abrange toda a Europa, aliás longe disso. Por fim, e apesar de defender o projeto da União Europeia, pelo menos dos ideais dos seus fundadores, tenho muitas dúvidas de que a União Europeia seja o fim da Europa. Até porque, é de uma arrogância tremenda e até, de uma certa ingenuidade, a consideração de que toda a história europeia, das suas nações, povos e línguas, tenha caminhado na direção única para a formação da União Europeia. O desplante foi tal que, recentemente, a União Europeia, recomendava aos Estados-membros, que promovessem nos currículos escolares da disciplina de História a ideia generalizada de que existe um racismo endémico na história europeia, um reforço da abordagem sobre o colonialismo e a promoção do argumento que, de alguma maneira, somos chamados a assumir a culpa pelos erros dos nossos antepassados. No limite, poderá residir a ideia, em alguma mente de um burocrata de Bruxelas, de que a União Europeia é o projeto federal que pretende federalizar uma expiação da culpa das nações.

Se aquilo que leva à declaração de Schuman é o ideal da cooperação de nações como forma de garantir a paz e reconstruir a Europa, a matriz do projeto europeu, estaria num equilíbrio político difícil entre soberanistas e federalistas. Seria dessa relação que se conseguiria dar passos significativos que melhorariam a vida dos europeus e impulsionariam a Europa no plano interno e externo. É sobretudo por isso que a saída do Reino Unido da União Europeia, foi uma perca terrível para todo o projeto europeu. Cabia aos britânicos a liderança do pensamento soberanista, sobretudo pela relação privilegiada que tinham com franceses e alemães. Ao ter saído e com a degradação política tanto na Alemanha como na França, vimos o acentuar de duas Europas completamente distintas: a Europa de Leste e a Europa Ocidental. Como resposta à queda moral e política de Paris e Berlim, desenvolveu-se uma maior concentração de poderes por Bruxelas, nomeadamente por um conjunto de instituições que não possuem a legitimidade que deveriam ter, sobretudo para o poder que exercem diariamente na vida das pessoas.       

Não me espantaria que o ano de 2024 possa ficar marcado por ser um dos últimos anos em que se realizarão eleições para o Parlamento Europeu. A União Europeia tornou-se um império de burocracia e Bruxelas um reduto cada vez mais isolado da sua missão original. A burocracia tornou-se, ao longo da História, um sinal de decadentismo dos projetos políticos e por vezes, o último refúgio de legitimidade dos decisores.

Foi nesse sentido que sempre considerei muito curiosa a postura da União Europeia ao recorrer ao 4º andamento da 9º Sinfonia de Beethoven para ir buscar o seu próprio hino. Tenho sinceras dúvidas sobre se Beethoven ficaria orgulhoso do destino que teve o seu Hino da Alegria e se seria um adepto da União Europeia nos seus atuais moldes. Se a União Europeia decidiu ir à 9º Sinfonia, é certamente porque não conhece a história da 3º Sinfonia do compositor que, assinala 220 anos da sua estreia em 2024 –a Heróica. Se Beethoven viveu num tempo e espaço em que a sua vida e obra teriam um impacto significativo na História, foi igualmente coincidente com outra personalidade incontornável: Napoleão Bonaparte. Se as cortes europeias, em 1804, olhavam com desconfiança e desconforto para a revolução francesa e para o papel de Napoleão, para muitos artistas, Napoleão era o símbolo maior da Liberdade, o príncipe do povo europeu, um libertador. Para Beethoven, Napoleão foi de tal forma determinante, que decidiu dedicar-lhe a sua terceira sinfonia. Antes de ser Heróica, chamar-se-ia Bonaparte. O que mudou? No fim desse ano de 1804, Napoleão coroar-se-ia como Imperador dos franceses em Notre Dame, mostrando que, afinal, era exatamente igual a todos os outros, não iria libertar os povos e era mais um tirano. Napoleão tentaria conquistar toda a Europa e Beethoven não lhe perdoaria, como tal, riscaria o nome Bonaparte no original da partitura e colocaria Heróica.   

220 anos depois, estamos num momento interessante da História europeia. Estará a União Europeia mais próxima da Heróica ou de Bonaparte? Será que o projeto europeu começou como Heróica e está cada vez mais Bonaparte? Bonaparte ficaria para a História como mais um dos muitos tiranos que atormentou a Europa, a Heróica seria determinante para o princípio do “Romantismo” na Música Clássica. Talvez no fim, acredito que muito dificilmente Beethoven gostaria desta União Europeia.

Professor