Os não representados

A grande maioria dos que não votam, abstêm-se porque não se sentem representados pelas opções e não porque são apáticos

Queridas Filhas,

Quando se analisam resultados de eleições nunca se contam os votos de quem não foi votar. Assim, se numa cidade com 100 eleitores apenas 40 votarem, as percentagens de voto representam a destes 40 votantes e não a dos 100 eleitores. Assumindo que o partido A recebe 20 votos, o partido B 10 votos, o partido C 5 votos e o partido D 5 votos, os resultados anunciados serão: Partido A 50%, Partido B 25% e partidos C e D 12,5% cada. Todos os órgãos eleitos respeitarão essas percentagens, e as análises e ilações tiradas da opinião democrática basear-se-ão nas mesmas percentagens. Para todos os efeitos, os 60 eleitores é como se não existissem. Talvez se perca dois minutos lamentando a alta abstenção e propondo que as pessoas são preguiçosas e pouco valorizam a democracia ou talvez tenham pouco interesse pelos candidatos.

E depois temos eleições em que a abstenção baixa dramaticamente e os resultados são ‘surpreendentes’. Em Portugal tivemos duas nas últimas semanas. As legislativas deram quase 20% dos votos ao partido Chega que tinha sido admoestado pelo antigo presidente da Assembleia da República e por muitos comentadores políticos. Nas eleições do Futebol Clube do Porto, o presidente Pinto da Costa depois de 42 anos em que bateu todos os recordes de vitórias em Portugal e no mundo não chegou a 20% dos votos na eleição mais participada da história do clube. 

Estes exemplos ilustram bem que se engana quem ignora os elevados níveis de abstenção. A grande maioria dos que não votam, abstêm-se porque não se sentem representados pelas opções e não porque são apáticos. A eleição com alta abstenção mostra que não sabemos muito da população consultada.

Em política, há o conceito que se chama a ‘janela de Overton’. Esta janela inclui aquilo que se permite discutir em praça pública. Tudo o que é tema tabu está fora de janela Overton. Estes temos vão mudando ao longo do tempo, mas para ilustrar o conceito temos a instituição do casamento. Durante o século XX sempre se indicava como apenas entre um homem e uma mulher. Uniões homossexuais estavam fora da janela Overton. No século XXI isso foi mudando e um pouco por todo o mundo o tema foi sendo discutido e em muitos países a legislação foi mudada para os permitir e sancionar. Mas ainda fora dessa janela estão uniões entre várias pessoas (‘Polyamory’) ou entre um humano e um agente de Inteligência Artificial. Poucos as defendem e são temas tabu de discussão pública. Isso é o que significa estar fora da janela Overton.

Os media do mundo ocidental são maioritariamente à esquerda do centro político. Por isso a janela Overton tem-se estendido muito mais à esquerda do que à direita nas últimas décadas. Entretanto a abstenção tem subido e o consenso tem sido que se teria chegado a uma maturidade ideológica e que as pessoas não estavam interessadas em votar. Entretanto projetos mais de direita foram propostos e a abstenção baixou e os resultados surpreenderam muitos ‘experts’: Trump, Brexit, Geert Wilders, Millei, Meloni, Chega, AfD, …

Os mesmos ‘experts’ rapidamente diagnosticaram uma crise democrática. Assumem que a democracia vai ser destruída. Mas não será antes o contrário? Não serão as democracias agora mais representativas da vontade popular que deviam representar? Não terá o ‘politicamente correto’ da ‘janela de Overton’ alienado e silenciado uma parte significativa da sociedade que tem de ser ouvida para seguirmos para a frente em diálogo democrático? Não será a descida da abstenção uma vitória para as democracias?