Cientologia. A religião como modelo de negócio

Adotando os elementos iconográficos do sucesso, e elevando as celebridades a santos de altar, esta religião concebida por um prolífico autor de ficção científica soube livrar-se do espírito e colocar o lucro no seu lugar, abrindo o caminho para um ideal de libertação que se confunde com os mantras do empreendedorismo que hoje vicejam por…

A par dos ensinamentos e dos elementos de ordem mitológica que vão sendo misturados à medida que uma religião desenvolve o seu perfume, há também certos mitos terrenos, bastante mais ilustrativos sobre a natureza e a operação de um determinado culto. Não deixa de ser curioso que a Cientologia tenha sido fundada na Califórnia nos anos 50 por um escritor de ficção científica, tendo começado como uma metodologia de autoajuda influenciada na psicanálise, e que veio depois a arquitetar um imaginário e uma disciplina que deve muito a essa confluência entre o fantástico e as disciplinas que descrevem e tratam as aflições de ordem mental. Houve quem atestasse que tudo começou com uma aposta que L. Ron Hubbard fez com um outro escritor de ficção científica, Robert Heinlein, de que seria capaz de fundar uma religião aplicando os mesmos dons e a persuasão com que gizava o enredo dos seus livros, e isto porque era aí que estava o dinheiro. Se queria realmente que as pessoas abrissem mão dos seus valores, tinha de lhes dar em troca um sistema de crenças em que elas tivessem uma confiança total, e que pudesse ser aplicado à vida. Contudo e a par deste lado anedótico, poucas décadas depois, e à medida que a organização fundada a partir dos seus ensinamentos se adaptava a um regime expansionista, o perfume provocava um arrepio especial com as lendas do grau de empenho e da implacabilidade dos métodos com que esta perseguia os seus detratores. Em 1993, quando o IRS enviou uma conta de mil milhões de dólares que eram devidos ao tesouro norte-americano em impostos, isto após ter calculado as receitas da Cientologia, membros desta organização infiltraram aquela agência e conduziram uma operação de intimidação de tal ordem que muitos dos agentes se queixaram de que viram as suas vidas engolidas por um sem número de problemas legais e outras formas de intimidação ou tormentos domésticos. De acordo com a investigação de Lawrence Wright para o livro Going Clear: Scientology, Hollywood and the Prison of Belief, «alguns funcionários do governo começaram a receber chamadas anónimas a meio da noite, ou a descobrir que os seus animais de estimação tinham desaparecido. Quer estes acontecimentos fizessem ou não parte do ataque da Cientologia, o certo é que esses incidentes elevaram a paranoia que muitos na agência estavam a sentir». A agência subitamente viu-se avassalada por mais de duas mil ações judiciais e acabou por capitular diante da campanha de processos e do assédio da igreja, reduzindo o montante em dívida para 12,5 milhões de dólares e acedendo ao intuito desta se ver classificada como religião, o que lhe permitiu poupar somas incalculáveis de impostos futuros.

 Ao longo dos anos, e a par da propaganda que continua a atrair novos membros por ser conhecida como a religião das celebridades, foram surgindo uma série de livros e relatos pessoais de pessoas que conseguiram escapar da igreja e que foram testemunhando como a organização recorre a uma série de táticas de condicionamento para extrair rendas exorbitantes dos seus membros enquanto atrai outros para a organização, explorando o seu trabalho e dominando todos os aspetos da sua vida. Tudo isto levou o diário The Guardian a reconhecer que «a Cientologia é um reflexo puro dos mais degradantes aspetos da cultura norte-americana, com a sua repulsiva veneração da celebridade; as suas atitudes estranhas em relação às mulheres, ao sexo, aos cuidados de saúde e à contraceção; a sua promessa de igualdade entre os seus seguidores, mas que, na realidade, aprofunda uma desigualdade esmagadora… É, à sua maneira obscura, a religião inevitável a emergir da América do século XX».

O exato número de cientologistas é impossível de determinar, com as conjeturas a partirem das dezenas de milhares oficialmente registados, mas ficando muito aquém dos milhões de pessoas de que a igreja diz cuidar em 165 países. De acordo com Wright, esta conta com pelo menos mil milhões de dólares em ativos líquidos, a que se somam propriedades estimadas no mesmo montante, fazendo dela uma das religiões mais ricas do mundo. Os lucros são obtidos através das vendas dos materiais necessários para completar os cursos de autoajuda, e a igreja soube aplicar estas receitas em investimentos inteligentes, isto além das contribuições arrancadas aos seus seguidores. Supõe-se que Tom Cruise, o mais destacado dos seus membros, tenha doado milhões ao longo dos anos, sendo que ele e outras celebridades têm um papel nas grandes cerimónias litúrgicas da igreja e também colaboram na operação de difusão e nos materiais de propaganda. A sua abordagem estabelece uma pouco subtil analogia entre esses métodos de autoajuda e aquela forma de enraizamento na existência com base num desenvolvimento da vida espiritual, abrindo caminho a uma confusão entre as esferas do empreendedorismo e dos modelos de valorização pessoal e a cultura religiosa. Na origem está a tese de Hubbard de que ao aderir ao programa, o seguidor seria capaz de melhor a sua saúde mental e as capacidades de comunicação, alcançando o sucesso e, consequentemente, um maior nível de realização pessoal e de felicidade. Assim, o apelo inicial e a utilidade da Cientologia ligam-se a um processo acelerado de psicoterapia, através do qual um seguidor ou “preclear”, se vê “auditado” por um cientologista, ou seja, passa horas a repassar as mesmas experiências dolorosas até desatar o nó e lhes retirar o seu conteúdo traumático, avançando em direção a esse objetivo final de ficar “limpo”, livre desses bloqueios. Com isto, ao desenterrar sucessivamente acontecimentos embaraçosos, também se coloca nas mãos do seu “auditor”, e esse efeito de exposição emocional prolongada, tal como acontece na psicanálise, torna-o particularmente recetivo às sugestões daquele que o guia, ficando submetido. No caso da cientologia, tudo isto ainda assume uma outra camada de pseudociência, com elementos tecnológicos que servem apenas para elevar a credulidade daquele que se submete à terapia, e que segura um “elétrodo cilíndrico” em cada mão, através do qual as suas reações são registadas num medidor (chamado “E-meter”), que permitirá ao auditor avaliar a progressão nesse esforço de desemaranhar essas memórias reprimidas (“engramas”). No fundo, e em termos convencionais, o paciente ou preclear está a submeter-se de forma intensificada a algo que, naturalmente, todos nós vamos fazendo com aqueles com quem mantemos laços de ordem afetiva: desabafar. Mas isto é feito em sessões extenuantes que se podem prolongar por várias horas, e passa assim por radicalizar os processos terapêuticos da psiquiatria convencional. O escritor William S. Burroughs, um dos primeiros entusiastas desta abordagem, descreve-a numa carta a Allen Ginsberg: Os cientologistas «fazem o trabalho sem hipnose ou drogas, simplesmente passam a cassete para trás e para a frente até o trauma ser eliminado. Funciona. Eu usei o método – parcialmente responsável pelas mudanças recentes».

Acontece que subir a ponte na Cientologia é extremamente dispendioso para o paciente, além de que, ao colocar-se nas mãos do auditor, que vai tomando notas e não está sujeito às mesmas orientações deontológicas que um psiquiatra, fica particularmente exposto se mudar de ideias e quiser desassociar-se da igreja. Há inúmeros testemunhos da forma como a coação e o assédio que é dirigido a antigos membros se serve de tudo aquilo que foi confiado aos auditores nessas sessões. No fundo, qualquer seguidor, com a confiança que deposita na igreja, vai oferecendo meios para o seu processo de extorsão. Algumas pessoas vão à falência no esforço para atingirem esses estágios finais de libertação, e a igreja está sempre a estender a ponte, outras acabam por criar distância ou deixar de vez a igreja. Mas apesar desses contornos persecutórios, no seu modelo de negócios, a cientologia aparenta-se com uma série de esquemas em pirâmide, empresas que vão adotando uma estratégia de coerção mais ou menos musculada dos seus membros, obtendo receitas ao dar a cada pessoa um bónus por recrutar outras para a força de vendas, de modo a que, para além da convicção, há um incentivo financeiro para dedicar mais e mais horas a servir a empresa. São estruturas que se retroalimentam desavergonhadamente da propaganda ideológica do próprio capitalismo, e que aumentam os seus lucros capturando os “colaboradores”, de tal modo que mesmo os tempos livres e todo o ambiente social acaba por se submeter a essa lógica de expansão, sendo certo que se não o fizerem enfrentam castigos e despromoções. Ao abrigo deste modelo, a própria identidade do indivíduo já não se distingue da sua ocupação profissional, e a ideia de felicidade é aquilatada à capacidade de integrar os valores da empresa. Numa altura em que por todo o lado vemos o empreendedorismo engolir a religião e até a medicina, fica cada vez mais claro como o lucro se tornou a dinâmica principal, levando a vida moderna a privilegiar as terapias rápidas, uma aversão a tudo aquilo que possa comprometer as metas de sucesso, e levando um número cada vez maior de pessoas a submeterem-se aos programas de “coaching de vida”, gritos primordiais, renascimento, lutas de almofadas, jejum, fins de semana e retiros arrastando a família, toda um regime de terapias com vista a uma reprogramação que promete soluções miraculosas. A cientologia soube antecipar estas tendências e, desde logo, adotar o fervor religioso presente nas dinâmicas do capitalismo.