Em 1945, enquanto a II Guerra Mundial caminhava rapidamente para o fim, grande parte da Europa preparava-se para reconstruir as cidades reduzidas a escombros. Mas em Lisboa a vida corria pacatamente, à margem dos grandes dramas a que se assistia lá fora. Salazar não só tinha conseguido evitar o envolvimento direto do país como lucrar com o conflito, jogando com uma posição ambígua de alinhamento discreto com os Aliados, ao mesmo tempo que negociava com a Alemanha de Hitler.
Entretanto, nesses meses finais da guerra, e mesmo depois da vitória dos Aliados, os tesouros pilhados pelos nazis eram escoados a bom ritmo através de países neutrais como a Suíça, a Suécia e Portugal, para serem convertidos em dinheiro.
«Enquanto a caça aos tesouros e ao ouro roubado avançava para leste e apresentava bons resultados um pouco por toda a Alemanha e para lá dela, a porta das traseiras que permitia fugir da Europa continuava entreaberta», escreve Neill Lochery em Lisboa II: os Países Neutros e a Pilhagem Nazi (ed. Casa das Letras). Essa porta das traseiras era, naturalmente, a Península Ibérica.
A propósito do seu novo livro, o historiador britânico fala-nos sobre o plano americano para recuperar a arte saqueada, a posição de Churchill face à neutralidade de Salazar e a controvérsia do ouro roubado aos judeus que repousa nos cofres do Banco de Portugal. Mais: Lochery – que conversou com o Nascer do SOL por videoconferência a partir do University College de Londres, onde é professor – acredita que continua a haver nalgumas casas do Estoril e de Lisboa arte roubada pelos nazis.
No coração deste livro encontra-se a Operação Safehaven. Em que consistiu e quais os seus principais objetivos?
A primeira coisa a dizer é que se tratou de um plano cheio de falhas, que foi essencialmente elaborado pelos americanos, com apoio britânico. Em termos gerais, destinava-se a gerir a situação pós-guerra nos países neutrais. Concretamente em relação a Portugal, havia questões relacionadas com trocas comerciais com as potências do Eixo e com os pagamentos em ouro. Queriam também certificar-se de que a ordem para confiscar os ativos alemães era cumprida e impedir criminosos de guerra nazis identificados pelos Aliados de circularem por países neutrais como Portugal. Focava também o alinhamento das políticas dos países neutrais com a aliança liderada pelas Nações Unidas, delineada na conferência de Bretton Woods, em 1944, que tratou das questões económicas relacionadas com a guerra. E, por fim, havia a questão central de impedir que a arte saqueada entrasse em países neutrais e fosse vendida ou exportada.
Disse que o plano tinha muitas falhas. Como correu?
Tudo isto parece muito bem. Mas houve vários problemas. O primeiro foi os britânicos verem isto como uma tentativa dos americanos para ganharem influência na ordem do pós-guerra. Havia o receio de os americanos preencherem o vazio criado pela guerra, o que levaria à diminuição da influência britânica na Europa e, possivelmente, também no mundo. Por tudo isto os britânicos desconfiavam muito da Operação Safehaven. O segundo problema era quem ia investigar e quem ia aplicar as medidas. Os serviços de espionagem britânicos e dos Estados Unidos possivelmente não estavam muito bem treinados neste tipo de operação. O último problema é que a operação era uma violação da soberania nacional. Salazar via-a como a justiça dos vencedores sobre os vencidos e mostrou-se muito relutante em aplicar os elementos da Safehaven relacionados com os criminosos de guerra.
Enquanto lia o seu livro, por várias vezes fiquei com a impressão de que os britânicos tinham para com Portugal uma atitude paternalista. Sentiam algum tipo de superioridade moral por terem travado a guerra, enquanto Portugal se manteve à parte?
Os americanos e os britânicos essencialmente dividiram entre si aquilo a que chamavam as suas ‘esferas de interesse’. Os americanos, por exemplo, ficaram mais com o Brasil, com quem acreditavam que tinham desenvolvido relações relativamente boas durante a guerra. E em grande medida entregaram Portugal aos britânicos, até porque havia a velha aliança de 1373 e uma longa relação. Você usou a palavra ‘paternalista’. Eu diria que foram arrogantes. Isso resultou em parte de a Grã-Bretanha se sentir desconfortável com algumas das decisões tomadas por Portugal durante a guerra. Em concreto a venda de volfrâmio aos alemães. Seja como for, julgo que os britânicos, com a guerra a encaminhar-se para o fim, lidaram muito mal com os portugueses e com Salazar. Foram cautelosos, porque queriam continuar a ter acesso permanente aos Açores, e também porque não eram estúpidos. Percebiam que era provável que viesse aí uma guerra fria com a União Soviética, e por isso não queriam hostilizar os portugueses e Salazar, cujas opiniões sobre o comunismo até estavam em sintonia com as da aliança ocidental em geral. Mas mostraram uma espécie de arrogância nas exigências para impor o programa da Safehaven que eu acho que era desnecessária. Uma das razões para isso foi a saída do embaixador em Portugal, Sir Ronald Campbell, que tinha sido embaixador em França e, quando França caiu, no verão de 1940, foi evacuado para Londres e colocado em Lisboa.
Um diplomata de topo.
Sim, era um dos principais diplomatas da sua geração. Quando foi mandado para Portugal em janeiro de 1941, Salazar ficou ao mesmo tempo muito contente e vagamente preocupado. Contente porque a Grã-Bretanha estava basicamente a dizer que Portugal tinha uma extrema importância para o esforço de guerra aliado. Mas, num segundo momento, terá pensado: ‘Este é um tipo muito esperto, com quem não vai ser fácil lidar’. Literalmente no fim da guerra, no Dia da Vitória na Europa, 19 de junho de 1945, Campbell anunciou que ia sair por motivos de saúde. Quem lhe sucedeu não era do mesmo calibre, e isso teve impacto na política britânica em relação a Portugal. Outro fator que não podemos subestimar é a derrota de Winston Churchill nas eleições de 1945. O Governo trabalhista de Clement Attlee, com Ernest Bevin nos Negócios Estrangeiros, tinha um ponto de vista em relação a Portugal muito diferente do de Churchill e do seu secretário dos Negócios Estrangeiros, Anthony Eden. Houve portanto, mudanças políticas significativas na Grã-Bretanha, bem como na América, com a morte de Roosevelt, substituído por Harry Truman. Mas perguntou-me sobre os britânicos e eu diria que isto faz parte de um padrão mais vasto. Há uma velha expressão: ‘Velhos amigos, os mais velhos aliados’. Tanto quanto sei é a mais velha aliança diplomática em vigor. Mas vendo ao longo da História, a política económica da Grã-Bretanha em relação a Portugal tem sido em parte de exploração. Como tem acontecido em muitos outros países, aliás.
A certa altura Salazar é descrito por um britânico como ‘o ditador matreiro’. As suas posições eram frequentemente ambíguas. O que pensava Churchill sobre a neutralidade portuguesa?
Churchill era muito mais benevolente em relação à posição de Portugal do que em relação à Suécia, por exemplo. Neste livro tento contextualizar e comparar a neutralidade portuguesa com a de outros países, o que nos dá uma compreensão mais aprofundada. Há duas formas de olhar para a neutralidade portuguesa. Dois enquadramentos possíveis. Um é o da moral. É legítimo o país ter vendido volfrâmio aos alemães? É legítimo ter permitido às empresas alemães operarem em Portugal? É legítimo ter lucrado com a guerra, em especial bancos como o Espírito Santo? Assim que se tornou claro a forma como o Terceiro Reich tratava os judeus na Europa ocupada, deveria ter Salazar parado de fazer negócio com os alemães e ter deixado de aceitar ouro alemão, pois sabia que tinha proveniência duvidosa? Esse é o enquadramento moral. Outro enquadramento possível é o da segurança. Aí Salazar fez tudo o que podia para garantir a segurança e a integridade territorial do país. E podia citar factos da Guerra Peninsular, em que as duas potências europeias da época, a França e a Grã-Bretanha, combateram uma guerra sangrenta em solo português, que provocou um número significativo de vítimas e teve efeitos devastadores na economia e na agricultura, muitos deles causados pelos britânicos e pela sua política de terra queimada. E depois poderia citar a Grande Guerra, em que os portugueses combateram ao lado dos aliados, causando tremendos tumultos políticos, sociais e económicos em Portugal. E levando, ironicamente, à ditadura militar e ao colapso da República. Salazar podia argumentar que a sua principal preocupação era evitar que a política internacional voltasse a fazer estragos em Portugal. Do ponto de vista da segurança, esse era o principal objetivo. Quanto à posição de Churchill, penso que oscilava entre estes dois polos. Julgo que, lá no fundo, Churchill compreendia que a principal preocupação de Salazar era manter a integridade territorial de Portugal e do império português. E, de tempos a tempos, quando lhe convinha, invocava o argumento moral: ‘Doutor Salazar, tem de parar de vender volfrâmio aos alemães. Está a prejudicar a causa aliada’. Portanto Churchill era seletivo nos critérios que usava para lidar com a neutralidade portuguesa. Depois da guerra, quando o ministro dos Negócios Estrangeiros inglês disse ‘Vejam bem! Salazar pôs as bandeiras a meia-haste pela morte de Hitler. Enviou uma carta de condolências ao povo alemão!’, Churchill respondeu: ‘Tudo bem… Não se esqueçam que ele correu um grande risco ao dar-nos acesso aos Açores sem lhe darmos garantias de proteção’. Olhando para o seu depoimento e para os documentos, Churchill foi bastante compreensivo para com a posição portuguesa. Como disse, muito mais compreensivo do que foi com a posição da Suécia ou da Argentina.
Foi para mim uma surpresa encontrar nesta trama um nome tão familiar como Buchholz. A livraria servia de fachada para o tráfico de obras de arte?
Você não foi o único a ficar surpreendido. Eu também fiquei chocado quando descobri os documentos e o rasto deste negócio de arte saqueada através da livraria. Karl Buchholz afinal não era um refugiado, mas um homem que negociava com arte roubada – e não era só um bocadinho, também tinha uma loja em Madrid. Inicialmente, a vigilância dos britânicos ao n.º 50 da Avenida da Liberdade não tinha em vista a localização de arte roubada. Montaram vigilância porque notaram que havia um grande número de agentes de espionagem alemães bem conhecidos que entravam e saíam da livraria. Inicialmente julgavam que era um ponto de encontro entre os agentes e os informadores. E a PVDE, a polícia secreta portuguesa [mais tarde PIDE], liderada pelo capitão Agostinho Lourenço, também tinha a livraria debaixo de olho. Daria um grande filme – todos a controlarem-se uns aos outros. Os britânicos descobriram logo o que se estava a passar. Havia duas agências britânicas envolvidas – o SIS [Secret Intelligence Service], que é o MI6, e também o Ministério da Economia de Guerra, em Londres, que estava a montar uma imagem abrangente das atividades em que estava envolvido este cavalheiro e as suas várias lojas de fachada. Como sabe, a livraria ainda existe, noutra localização, e hoje pertence à Leya, que é a minha editora em Portugal, o que não deixa de ser um pouco irónico [risos].
No livro conclui que é provável que ainda haja obras de arte roubadas pelos nazis em coleções particulares portuguesas. Ao mesmo tempo que estamos aqui a falar, o proprietário de uma dessas obras pode estar a olhar para um quadro pendurado na parede. Tem alguma ideia de que tipo de obras se pode tratar? Impressionistas de França, velhos mestres holandeses, arte ‘degenerada’ dos expressionistas alemães?
É uma boa pergunta. Devemos lembrar que os nazis saquearam 20% de toda a arte europeia. Imagine que entra num museu e que em cada cinco quadros falta um. Foi um saque gigantesco. Tanto de arte a que os nazis chamaram ‘degenerada’ e que não era aceitável à luz da ideologia do nazismo, como de arte que era aceite pela ideologia nazi. Em guerras anteriores tinha havido saques de arte, mas este foi sistemático. Foi, essencialmente, uma tentativa para despojar a Europa da sua herança cultural. Uma quantidade significativa dessa arte foi passada através dos países neutrais, particularmente no período entre o Dia D, junho de 1944, e o fim da guerra, prolongando-se ainda pelos seis meses, um ano, imediatamente a seguir ao fim da guerra. Uma parte significativa dessa arte passou por Portugal, frequentemente em trânsito para o Brasil, e daí para a Argentina. Mas também se realizaram leilões em Portugal, particularmente quando a guerra caminhava rapidamente para o fim e as pessoas tentavam converter os seus bens em dinheiro vivo. Pergunta-me que tipo de pinturas seriam. Julgo que seria um vasto leque, mas Portugal era, e ainda é, um país tradicional e conservador. E por isso julgo que a maioria das pessoas que colecionavam arte não teria mostrado interesse pela arte ‘degenerada’, cujo valor na época ainda não estava completamente reconhecido. Julgo que os gostos dos colecionadores e galeristas portugueses seriam mais conservadores. Mesmo assim não poria de parte a possibilidade de encontrar exemplos de arte ‘degenerada’ em casas do Estoril, Cascais, Lapa ou onde quer que vivam os lisboetas mais abastados.
Ainda assim, a quantidade de arte contrabandeada para Portugal deve ter sido relativamente pequena em relação à que foi canalizada para a Suíça. A Operação Safehaven também contemplou a Suíça?
Contemplou, na medida em que a Suíça era um país neutral. E a resposta dos responsáveis suíços foi sorrir simpaticamente, prometer cooperar – e não fazer absolutamente nada, dando as mesmas justificações que Salazar deu: que a Safehaven punha em causa a soberania nacional e, muito importante, as apertadas leis de sigilo do sistema bancário e de depósitos que permitiu que uma série de obras de arte fossem contrabandeadas para a Suíça e armazenadas em cofres-fortes. Suspeito que a maior parte ainda lá continua. Para lhe dar um exemplo, a galeria de Paul Rosenberg, um dos mais influentes negociantes de arte na Europa e na América do século XX, foi fechada pelos nazis quando ocuparam a França no verão de 1940. Ele conseguiu escapar para a América, via Lisboa. Passou o verão de 1940 em Sintra, antes de apanhar um transatlântico para os Estados Unidos, onde abriu uma nova galeria em Nova Iorque. Mas uma parte significativa do seu acervo, que era sobretudo composto, mas não apenas, por arte degenerada, como os nazis lhe chamavam, foi enviada por Hermann Göring para a Suíça. E embora algumas obras da galeria tenham sido restituídas à sua neta, Anne Sinclair – uma jornalista e repórter de televisão muito conhecida, que foi casada com o ex-patrão do FMI, Dominique Strauss-Khan –, uma parte muito significativa das obras de arte da galeria Rosenberg nunca apareceu. Continua, presumimos, escondida na Suíça. Ainda não a conseguiram localizar. Mas em Portugal havia dois tipos de contrabando. Um era transitório…
Para o Brasil?
Sim, para o Brasil e para a Argentina. Essas eram difíceis de rastrear porque as telas eram retiradas das molduras – cortadas –, enroladas e transportavam-se muito facilmente. Mas não era apenas pintura, eram também esculturas, joias, qualquer forma de arte que queira imaginar. Havia duas zonas principais de transporte para a América do Sul. Uma era Lisboa e a outra Bilbau, no norte de Espanha. Os nazis, especialmente no fim da guerra, mandaram bastante arte a partir da Suécia, Estocolmo e Gotemburgo, para Bilbau, e daí para a Argentina. Mas há ainda muita pesquisa a fazer. E vários fatores tiveram impacto na investigação da arte saqueada depois da guerra. Os britânicos deixaram de procurar em Portugal pelas razões de que já falámos – a importância de Portugal no pós-guerra, a necessidade dos Açores, e o facto de os portugueses terem cooperado discretamente com os britânicos no período pós-guerra.
O banqueiro Ricardo Espírito Santo tinha muitas ligações à alta sociedade alemã, bem como ao Duque de Windsor, que também era germanófilo. Não é estranho que não tenha aproveitado a oportunidade para enriquecer as suas coleções de arte a preço de saldo?
A história de Ricardo Espírito Santo tem sido bastante estudada em Portugal. No estrangeiro, com razão ou sem ela, ele é visto de forma mais problemática. Ronald Campbell foi talvez quem melhor sintetizou a sua posição quando disse que Ricardo não era a favor dos Aliados, não era a favor dos nazis, era favor do dinheiro. Para Campbell, ele era essencialmente um pragmático. Os serviços secretos britânicos foram um pouco mais críticos. Não conseguiam perceber a sua relação com o barão Hoyningen-Huene, o embaixador alemão em Lisboa. E, havendo a percepção de que a sua família era pelo menos em parte judia – além disso ele era casado com uma mulher judia –, perguntavam-se como podia ele negociar volfrâmio com os nazis. Quanto à outra paixão da sua vida, que era colecionar antiguidades, pela pesquisa que fiz ele sai muito mais limpo do que noutras áreas. Não analisei os registos de aquisição de todas as peças, mas o seu nome nunca aparece na documentação aliada, seja em Washington, seja em Londres, como estando envolvido com arte saqueada. Achei isso interessante porque os americanos eram abertamente críticos de Espírito Santo, apelando até a que o banco fosse colocado na lista negra das empresas. Eu esperava encontrar alguma documentação americana sobre Ricardo e a sua coleção de antiguidades, mas não encontrei nada de comprometedor. De qualquer modo, acho Ricardo Espírito Santo uma figura muito, muito interessante. E devo dizer que os britânicos recorriam muitas vezes a ele para transmitir mensagens a Salazar. Não estou de modo algum a sugerir que Espírito Santo fosse um mero mensageiro durante a guerra, mas foi muito útil aos britânicos para transmitir mensagens sobre questões sensíveis que os dois principais diplomatas, Ronald Campbell e o chefe do Ministério da Economia de Guerra em Lisboa e Madrid, David Eccles, não queriam colocar a Salazar.
Espírito Santo era uma espécie de diplomata informal?
Penso que essa é uma expressão feliz. Alguns testemunhos descrevem-no como um amigo próximo de Salazar. Para ser honesto, não estou certo de que Salazar tivesse amigos próximos. Mas Espírito Santo tinha acesso a Salazar, reuniam-se, portanto esse era um canal muito útil aos Aliados.
Alguém que aparentemente se aproveitou das circunstâncias foi Gulbenkian, que adquiriu obras da coleção Rothschild a baixo preço. Mas não percebi, se Gulbenkian ofereceu tão pouco dinheiro, por que não tentou Rothschild vender as obras em Londres, onde elas aliás se encontravam.
Durante parte da guerra, em 1940, [o barão Henri de] Rothschild esteve sediado em Lisboa. Os seus ativos tinham sido confiscados. Ele ainda pediu a Espírito Santo ajuda para libertar alguns dos seus bens, Espírito Santo falou com Salazar para tentar pressionar os alemães, mas não teve sucesso. O negócio foi facilitado em Londres por Kenneth Clark.
O diretor da National Gallery.
Exato. Um homem cujos pontos de vista durante a guerra eram, no mínimo, interessantes.
Interessantes?
Sim. Um colega meu fez alguma pesquisa sobre ele. Clark não simpatizava nada com judeus. Mas, voltando ao negócio, foi fechado por Gulbenkian em privado com Rothschild. Esta foi uma venda que se realizou por um valor muito abaixo do valor de mercado, porque Rothschild precisava desesperadamente do dinheiro. Isso, segundo a Declaração de Washington de 1998 sobre bens saqueados, que é o enquadramento legal que se aplica, é entendido como uma liquidação, que temos de considerar como arte saqueada. Gulbenkian comprou arte a um ritmo impressionante durante a guerra. Estava em Lisboa, no Hotel Aviz, gerindo as suas duas paixões: o seu império empresarial e a sua coleção de arte.
Durante a guerra, o Estoril era uma espécie de ninho de espiões, mas parece que os serviços de espionagem nunca obtinham informação realmente importante. Podemos atribuir essa relativa falta de eficácia ao facto de a PVDE, a polícia secreta portuguesa, ser uma espécie de agente duplo que recebia pagamentos tanto dos britânicos como dos alemães?
A espionagem em Lisboa durante a guerra teve alguns sucessos importantes. Talvez o principal tenha sido o controlo e registo de todas as entradas e saídas de navios das águas territoriais portuguesas. Os alemães também alegavam ter tido muitas operações bem-sucedidas em Lisboa. Aliás, a única coisa em que Ian Fleming, uma das grandes figuras britânicas da espionagem naval [e criador do agente 007, James Bond], e Walter Schellenberg, o chefe dos serviços secretos alemães, estavam de acordo, era a importância estratégica de Lisboa. E ambos acreditavam que tanto os Aliados como o Eixo tinham obtido aí alguns sucessos. Onde falharam, penso eu, foi em operações de maior escala que envolviam a polícia ou a população local. Como referiu, a PVDE, que era uma das principais fontes de informações para o MI6 e para as secretas alemãs, estava até certo ponto a fazer jogo duplo. Os britânicos alegavam que a vasta maioria dos agentes da PVDE estava na lista de pagamentos das secretas alemãs e o depoimento de Walter Schellenberg depois da guerra, em Londres, parece confirmar que ele acreditava que a polícia portuguesa atuava em estreita colaboração com os alemães. Mas os britânicos achavam que Agostinho Lourenço, o chefe da PVDE, pendia mais para o seu lado do que para o lado dos alemães. E apresentavam várias razões para isso. Uma era o facto de ele ter combatido na Grande Guerra ao lado dos Aliados, na Bélgica. Outra era ele ter sido o responsável pela segurança durante a visita anterior do Duque de Windsor, que era então Príncipe de Gales, a Lisboa nos anos 20. E realmente houve durante a guerra contactos entre o MI6 e Agostinho Lourenço relativamente produtivos. Também houve pontos de rutura na relação, em particular por causa de uma tentativa embaraçosa dos britânicos para um plano de demolições em Portugal num cenário pós-invasão dos alemães. Para os ajudar nesta operação, recrutaram figuras locais da oposição a Salazar. O plano foi descoberto e levou à expulsão do chefe das operações especiais em Lisboa, um homem chamado Jack Beevor, pai do historiador Antony Beevor.
Não sabia disso.
Voltando à pergunta, o trabalho dos serviços secretos, tanto aliados como alemães, foi muito dificultado por Lisboa ser tanto um centro de espionagem como de boatos e falsas informações. Depois da entrada dos americanos por causa do ataque a Pearl Harbor, tornou-se regra pagar à população local a troco de informações. E muita desta informação acabava por revelar-se ou desatualizada, ou apenas parcialmente verdadeira, ou mesmo completamente falsa.
A minha última pergunta diz respeito ao ouro nazi, que ainda hoje é uma questão desconfortável para muitos portugueses.
As vossas reservas de ouro são maiores do que as da Grã-Bretanha. Gordon Brown vendeu uma grande quantidade de ouro em 2009, numa altura em que a cotação estava em baixo. É considerado um dos maiores erros económicos da Grã-Bretanha do século XXI. E por isso Portugal tem hoje mais ouro do que a Grã-Bretanha.
No seu livro diz que Portugal beneficiou com a guerra. Mas isso entra em conflito com a nossa ideia de que continuou a ser um país pobre. Quem, na sua opinião, lucrou verdadeiramente: o povo português ou os cofres do Banco de Portugal?
Acho que não foi o povo português, porque Salazar nunca gastou o ouro. Podia ter tomado a decisão, como muitos em 1945, 1946, esperavam que tomasse, e dito: ‘Tivemos um golpe de sorte, vamos usar este lucro inesperado para modernizar Portugal. Vamos usá-lo para desenvolver um sistema de saúde melhor, para erradicar as doenças do país. Vamos investir na educação. Vamos investir na aceleração da industrialização e transformar Portugal num país mais rico e mais dinâmico’. Mas em vez disso Salazar decidiu guardar o ouro para um dia difícil em que tivesse necessidade. E encontrei outra justificação que ele deu numa reunião com David Eccles, o antigo chefe do gabinete de economia de guerra na Península Ibérica. Eccles tornou-se ministro dos tories, em governos de Churchill e [Anthony] Eden. Em 1961 foi enviado pelo primeiro-ministro conservador Harold McMillan para Lisboa, para perceber o que raio se estava a passar em Portugal, quando começou a revolta em Angola. No final da reunião, Eccles perguntou a Salazar: ‘Por que não gastou o ouro?’. E Salazar deu-lhe esta resposta: ‘Não gosto de coisas que distorçam a economia. Só podemos gastar o que ganhamos. Eu faço as contas com o que Portugal e as províncias ultramarinas produzem’. Ele achava que os benefícios trazidos pela venda do ouro provocariam uma distorção na economia. Eccles não ficou 100 % convencido. Achava que havia outra razão para Salazar não ter usado o ouro. Como sabemos, esse dia difícil de necessidade nunca chegou e o Estado Novo não gastou o ouro. Ironicamente, foi um governo democrático que vendeu uma parte dele.