A precária solução governativa atual, onde o governo parece, por vezes, uma bola de ping-pong num jogo despesista entre a esquerda e a direita, põe a nu a fragilidade do edifício de governança orçamental. Estou a pensar, concretamente, na vertigem de medidas com implicações financeiras aprovadas por iniciativa do governo ou por coligações negativas das oposições. Sem querer ser exaustivo, falo da redução adicional do IRS no topo dos cortes previstos no OE24, da recuperação do tempo de serviço dos professores, do IRS jovem, do fim de portagens nas ex-SCUT, da redução da taxa de IVA da eletricidade, do IMT das casas adquiridas por jovens; e a procissão ainda vai no adro. (Isto sem falar do delírio ‘socrático’ do NAL+TTT+TGV cujo ónus será sentido apenas mais tarde.)
Pode pensar-se que a norma-travão inscrita na CRP desde 1976 mitiga as piores consequências deste bodo, pois medidas que reduzam a receita ou aumentem a despesa apenas podem entrar em vigor com o orçamento de 2025 e não no exercício corrente. É verdade, mas é insuficiente. Basta ver, extremando o argumento, que a norma não impede que uma coligação oposicionista molde desde já toda a parte discricionária do OE 2025, reduzindo o espaço fiscal do governo, a sua capacidade de fazer política e subvertendo o próprio processo formal de aprovação do orçamento. Por outro lado, o simples ‘chutar para a frente’ da implementação destas medidas orçamentais avulsas pode, facilmente, comprometer qualquer esforço de programação plurianual da receita e da despesa pública.
O problema é delicado pois estão em confronto dois mandatos: por um lado, o poder de iniciativa legislativa dos deputados (o mandato popular) e, por outro, a responsabilidade dos executivos perante os contribuintes (presentes e futuros) pelo modo como os seus impostos são usados. A norma-travão da CRP é um mecanismo que procura equilibrar esses dois valores.
Infelizmente ela foi concebida para mares menos inclementes. Este tipo de norma foi introduzido no quadro português por Afonso Costa para disciplinar as contas da 1.ª República e conheceu uma versão muito musculada, (que basicamente vedava aos deputados a apresentação de propostas com implicações na receita ou na despesa), na Constituição de 1933. Sem cair neste extremo – que compromete o equilíbrio entre responsabilidade a representatividade – penso que seria muito desejável um reforço da norma-travão. Por exemplo, o Professor Reis Novais sugeriu em entrevista ao Público algo semelhante ao artigo 40, 3, da Constituição Francesa que permite ao governo suscitar a confiança a propósito de leis com implicações financeira, (confiança que, para ser negada, obriga a oposição a convergir num primeiro ministro alternativo).
É claro que pensar que uma emenda constitucional, por simples ou razoável que seja, pode estar nas cartas com este Parlamento, estes atores e este clima político é puro lirismo. Os partidos, fracos e temeroso, preferem tentar medrar num pântano de campanha eleitoral permanente. Mas PS e PSD fariam bem em refletir e infletir. Qualquer futuro governo que se forme nos próximos anos será liderado por um deles, previsivelmente em condições de minoria. Todas as pedras hoje arremessadas por um, logo se revelarão um boomerang. Quem vier a ter a responsabilidade de governar perceberá rapidamente como, sem algum controlo eficaz da guerrilha orçamental, será muito difícil navegar as novas regras da EU, todas elas baseadas em planos orçamentais de médio prazo.
Travões a fundo
Pensar que uma emenda constitucional, por simples ou razoável que seja, pode estar nas cartas com este Parlamento, estes atores e este clima político é puro lirismo.