Desde o dia em que alguém descobriu que o escritor Albert Camus tinha tido um passado de guarda-redes numa insípida equipa argelina que o cargo subiu vários degraus na escala da pseudo-intelectualidade universal. Camus nunca perdeu muito tempo a filosofar sobre o seu posto de keeper infantil na Association Sportive de Montpensier e, em seguida, já mais velho, no Racing Universitaire d’Alger, até que aos 17 anos apanhou uma tuberculose que o deixou incapaz de esforços suplementares. Depois, certo dia, no Parque dos Príncipes, o dia 17 de outubro de 1957, foi entrevistado por um canal televisivo quando se preparava para assistir a um encontro entre o Racing de Paris e o Mónaco. Houve um repórter atrevido que lhe pôs um microfone à frente e ele soltou a frase que ficaria gravada na fita da memória desta espécie de Humanidade cada vez mais doente: «Tudo o que sei sobre moralidade e obrigações devo-o sobretudo ao futebol». Enfim, convenhamos que terá sido mais uma pilhéria do que de verdadeira filosofia. Afinal nunca passou assim tanto tempo no futebol para sair dele com convicções morais suficientemente alicerçadas para dar lições a quem quer que seja. Mas, a verdade é que deu um jeitão para que se escrevessem milhares de páginas sobre ele e sobre aquela função assombrada que é a de guarda-redes, o único da equipa que joga com um equipamento diferente do dos colegas e que, só por isso, merece a atenção especial de todos os que amam o jogo inventado pelos ingleses.
Confesso que, tendo sido sempre um apaixonado pelo nove, e ter passado anos a fio a jogar desde os relvados dos Olivais Sul (e a placa de cimento do Maracangalha) a todos os campos do país, da Luz, Alvalade, Jamor, a Freiria dos Chapéus e ao campo do Redolho, em Águeda, fazendo de conta que era ponta-de-lança e esforçando-me em cada jogo por marcar um golo de pontapé-de-bicicleta, o movimento mais bonito do futebol, nunca resisti à tentação de escrever sobre guarda-redes, aqueles que, afinal, deveriam ter sido os meus grandes inimigos. Há algo de sublime naquela solidão de estar entre dois postes com uma barra por cima a defender os 7,34 metros x 2,44, tantas e tantas vezes longe da bola, essa mágica senhora das paixões.
Amadeo Raúl Carrizo Larretape: era a ele que eu queria chegar hoje. Num dia de desespero soltou uma frase que abafa a vulgaridade da frase de Camus: «Vivo en el puesto más ingrato del fútbol!». Nascido em Rufino, Santa Fe, a terra que Amelita Baltar tornou imortal no tango de Piazzola Balada para Mi Muerte: «Hoy, que Dios me deja de soñar/A mi olvido iré por Santa Fe/Sé que en nuestra esquina vos ya estás/Todo de tristeza hasta los pies/Abrazame fuerte, que por dentro oigo muertes/Viejas muertes agrediendo lo que amé/Alma mía, vamos yendo/Llega el día, no llorés».
Amadeo, como lhe chamavam, sofria de solidão quando a bola estava lá longe e ele, na sua gaiola da baliza, tinha saudades de segurá-la com os braços. Foi o primeiro guarda-redes argentino a usar luvas num tempo em que resolveu copiar o seu colega italiano Giovanni Viola. Foi o primeiro guarda-redes argentino a libertar-se da solidão da baliza e sair para o ataque, jogando fora da grande área, esperando pelos adversários fora da grande-área como os desafiasse, toureiro chamando o touro, gritos de incentivo como quem se recusasse a estar ali, quieto, à espera do momento em que iam exigir tudo da sua pacificação interior para que se tornasse selvagem na busca da impossibilidade da morte. Foi herói do River Plate com 521 jogos, uns mais solitários do que outros. No seu posto, com a bola distante, filosofava. Morreu em Buenos Aires, em março de 2020, tal como Amelita saberia certamente quando cantou: «Moriré en Buenos Aires, será de madrugada/Que es la hora en que mueren los que saben morir/Flotará en mi silencio la mufa perfumada/De aquel verso que nunca yo te pude decir/Andaré tantas cuadras y allá, en la Plaza Francia/Como sombras fugadas de un cansado ballet/Repitiendo tu nombre por una calle blanca/Se me irán los recuerdos en puntitas de pie…». Li muitas coisas sobre Amadeo mas não sei se morreu de madrugada. Sei que era um homem amargurado mas que voava como um pássaro cujos braços fossem asas que um deus qualquer se esqueceu de acabar. Sei que pensava muito em todos os momentos em que se encontrava fechado e só na gaiola da sua solidão. Não quis, apesar de acabado, deixar de ser guarda-redes. Fugiu para o Peru e para o Alianza, para a Colômbia e para os Millionarios, mas já ninguém o queria para jogar, queriam-no para terem Amadeo, o guarda-redes filósofo e triste que nunca escondeu a sua solitude e a ingratidão desse lugar de guarda-redes perdido…