A curiosidade humana é um traço inerente ao caráter coletivo que nos torna bisbilhoteiros por natureza. Desde os tempos em que o primeiro ser humano, num ato de pura audácia, decidiu espiar a vizinha a tomar banho no rio, que somos irremediavelmente atraídos pela vida alheia.
Como diria William Shakespeare, “O olho do homem nunca está satisfeito”. Realmente, quem somos nós para contrariar o poeta? Esta nossa curiosidade inata é tão profunda que, se fosse um buraco, já teríamos chegado ao outro lado do planeta. Portanto, admitamos, somos cuscos, não há como negar!
No passado, a nossa cusquice limitava-se às conversas ao redor das fogueiras e aos cochichos nas praças das aldeias. Mas hoje, ah, hoje, temos todo um mundo novo de cusquice à nossa disposição com as redes sociais e os reality shows a serem excelentes exemplos disso. É como se tivessemos um acesso privilegiado ao espetáculo da vida dos outros. “I’ll be watching you” como nos diz Sting em “Every Breath You Take” aplica-se que nem uma luva!
As histórias e as narrativas alheias exercem, de facto, um magnetismo inegável e manifestam uma conexão profunda entre as pessoas. Quem de nós nunca fingiu estar absorto na leitura de um jornal, enquanto os ouvidos se focam na discussão fervorosa da mesa ao lado?
E o que dizer dos nossos programas de televisão? Das peripécias de José Castelo Branco aos dramas do “Big Brother”, não faltam fontes de entretenimento para alimentar esta nossa — por vezes mórbida até — sede insanciável por detalhes íntimos, quanto mais escabrosos melhor.
Imagine, se pudéssemos espreitar diretamente pela fechadura da casa do vizinho, qual seria o limite da nossa curiosidade? Provavelmente, não haveria limites. Seria uma overdose de realidade que nos deixaria num extâse de satisfação, como no filme “Rear Window” de Alfred Hitchcock, onde o personagem interpretado por James Stewart se torna num voyeur involuntário da vida dos seus vizinhos.
Na era digital, a curiosidade não mata o gato, mas certamente o expõe no YouTube. As redes sociais e a internet transformaram a privacidade num reality show sem fim, como se a nossa cusquice tivesse tido um upgrade tecnológico. Agora, espiamos pela janela digital, onde cada clique revela um fragmento delicioso da vida alheia.
A propagação de vídeos e fotos pessoais na internet tornou-se uma prática tão comum que até parece que vivemos numa constante edição do “Big Brother” ou da “Casa dos Segredos”, que ninguem vê mas todos conhecem e onde somos ao mesmo tempo espectadores e participantes. E a obsessão pelos detalhes pessoais da vida dos influenciadores? É como se estivéssemos todos num episódio interminável de “Keeping Up with the Kardashians”, só que com pessoas que nem sequer conhecemos pessoalmente.
É a festa global da cusquice, onde a privacidade é o convidado de honra que, paradoxalmente, ninguém consegue encontrar. Como a cantora Ivete Sangalo diria, “a festa vai rolar aqui no gueto”, alimentada pela nossa incessante vontade de cuscar diria eu!
E aqui estamos nós, a navegar nesta era digital, onde a linha entre o privado e o público é tão tênue quanto a paciência de alguém à espera que um vídeo carregue com uma internet lenta. E enquanto navegamos, talvez nos devêssemos perguntar: até onde nos pode levar esta nossa obsessão pela vida dos outros? E mais importante que tudo, será que lá também tem Wi-Fi? Fica a pergunta no ar!
Efetivamente, casos como o de Britney Spears, cuja batalha pela tutela revelou aspectos íntimos da sua vida pessoal e saúde mental em inúmeros documentários e nas redes sociais, e o de Kanye West, que frequentemente compartilha detalhes das suas lutas pessoais e familiares no X (antigo Twitter para os mais distraídos), destacam esta ironia paradoxal. Fazemos parte de uma espécie de voyeurismo coletivo, onde todos têm uma janela para espreitar e, simultaneamente, uma cortina privada que teimamos em manter semi-aberta.
Transformamos assim a privacidade num tesouro cada vez mais esquivo no turbilhão de bytes e algoritmos que nos cerca porque, afinal, o que seria da vida sem um pouco de cusquice digital? Como diria o grande filósofo moderno, o Facebook: “Partilha tudo.” E nós partilhamos, reclamamos, mas nunca deixamos de cuscar. Porque, no fundo, somos todos uns cuscos num mundo onde as fechaduras são digitais e as chaves estão ao alcance de um clique.
A contradição é por demais evidente: queremos proteger os nossos segredos, a nossa intimidade, mas não conseguimos resistir à tentação de espiar os segredos dos outros. É como se estivéssemos todos num gigantesco mercado de mexericos, onde a privacidade é a mercadoria mais valiosa e, paradoxalmente, a mais descartada.
Esta dualidade expõe inequivocamente a natureza social do ser humano, que é impulsionada por uma curiosidade insaciável e um desejo inerente de formar vínculos, tal como Rousseau tão bem articulou. A linha que separa o que é público do que é privado é que se tornou ténue, espelhando estes nossos anseios tão contraditórios mas tão reais.
Já Jean-Paul Sartre, em “Huis Clos”, afirmava que “o inferno são os outros”, sugerindo que a constante observação e julgamento dos outros é uma forma de tortura psicológica, uma invasão que destrói a autenticidade e a liberdade individual. Sartre via a privacidade como essencial para a liberdade e a autêntica expressão do eu.
E até Aristóteles, na Grécia Antiga, falava sobre a curiosidade humana em termos de “zoon politikon” (animal político), indicando que os seres humanos são naturalmente inclinados a viver em comunidade e a interessar-se pela vida dos outros. No entanto, também ele ressaltava a importância de cultivar a virtude e a ética para equilibrar estes nossos impulsos naturais.
Mas também a literatura explora este dilema com profundidade. George Orwell, no seu distópico “1984”, apresentou o “Grande Irmão”, uma entidade que tudo vê e tudo controla, simbolizando a perda total da privacidade. A obra é, não só um alerta poderoso sobre os perigos da vigilância excessiva, como também uma reflexão sobre como a exposição contínua pode desumanizar e controlar a sociedade. Mas a questão coloca-se: não seremos nós o principal alimento e ao mesmo tempo o cozinheiro desse “Grande Irmão”?
Como naquela canção do Rui Veloso, “O prometido é devido”, viajamos num mar digital onde prometemos respeitar a privacidade alheia, mas constantemente nos vemos atraídos pelos ecos das vidas dos outros. Queremos ser guardiões do nosso espaço, mas somos ao mesmo tempo voyeurs das histórias alheias, à procura de uma conexão que transcenda a frieza dos ecrãs.
Nesta dança entre o ver e o ser visto, resta-nos um vislumbre de esperança onde o segredo é a alma do negócio, mas a privacidade é a alma da vida. Guardemos, então, os nossos segredos com a mesma ternura com que respeitamos os dos outros. Pois é no silêncio do nosso íntimo que encontramos a verdadeira essência da nossa existência, onde cada alma é um universo a ser descoberto, mas apenas pelo próprio dono.
Lembre-se que a verdadeira conexão não está em espiar, mas em respeitar e ser respeitado. Contudo, admitamos que, mesmo enquanto lutamos por um equilíbrio, não podemos escapar à nossa natureza insaciável e curiosa. Somos cuscos!