De um filósofo francês nunca antes editado em Portugal, chega-nos Dériville Cidade-deriva. Os situacionistas e a questão urbana, editado pelo Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, livro onde Bruce Bégout interroga a prática e a teoria de um movimento vanguardista do século passado que tomou como objecto revolucionário a cidade.
Numa conhecida conferência, o filósofo francês Michel Foucault falava numa “ansiedade da época” que diria respeito ao espaço, e já não ao tempo. A afirmação, naquela forma ao mesmo tempo elegante e indubitável que Foucault conferia aos seus soundbites, escondia, no entanto, uma perplexidade: o século XX, onde ele escreveu essa frase, foi um século onde a experiência temporal foi interrogada de todas as formas, principalmente por um outro pensador que Foucault bem conhecia, o filósofo nazi e antissemita Heidegger (não esqueçamos, no entanto, Bergson). Actualmente, talvez se possa circunscrever melhor a afirmação de Foucault, partindo do horizonte inultrapassável em que grande parte da humanidade se encontra: é a cidade, em todas as suas modalidades, o lugar onde se traduz a “ansiedade da época” – agora que parece governar sozinha, escapando de todas as dicotomias onde se viu pensada. Nada há de exterior, nada se encontra além, do fenómeno urbano.
E talvez se possa afirmar que os filósofos e os pensadores costumam ter o seu espaço de eleição, o lugar onde o pensamento se torna concreto ou vai além dele mesmo: uma estação de caminhos de ferro onde alguém espera um comboio permitiu a Heidegger, num livro chamado Os Conceitos Fundamentais da Metafísica, retirar um conjunto de consequências sobre a experiência do tempo; o hospício, o hospital, a prisão, num outro exemplo, permitiram a Foucault ir formulando aos poucos o seu conceito de heterotopias – lugares ao mesmo tempo centrais e deslocados da sociedade; a famosa casa de Wittgenstein, que parece ligar-se de forma excêntrica ao seu pensamento, seria, também ela, um outro exemplo.
Decorre daqui a importância de um pequeno livro de um pouco conhecido filósofo francês, Bruce Bégout, nunca antes traduzido em Portugal, que inaugura uma colecção do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra – mostrando que perdura algum fôlego na filosofia de língua francesa, além dos inevitáveis Rancière, Badiou e Didi-Huberman, e mostrando, igualmente, que as instituições conseguem fugir do já conhecido e das estrelas carregadas de capital simbólico, mapeando lugares outros do pensamento.
Em certos meios (académicos ou vindos do activismo), o livro de Bégout (Dériville Cidade-Deriva. Os situacionistas e a questão urbana) não trará, talvez, nada de muito novo ou original a um tópico onde a bibliografia é já extensa. Mas perante o panorama português, onde este tipo de questões relativas à cidade tendem a ser parasitadas pelo discurso político e partidário, o surgir de um livro como o de Bégout pode ser encarado como um elemento interessante numa táctica que permita alargar o âmbito da interrogação, os termos com que as questões são colocadas. Permite-nos ver, aliás, como é que um conjunto de pessoas – algumas delas conhecidas do público português, como Guy Debord ou Raul Vaneigem – conseguia ser bastante mais radicais na forma como colocavam as questões, na articulação destas com a prática política, do que o nosso panorama: aquilo que, neles, era uma problematização com um âmbito revolucionário, onde o que estava em causa era a conquista das ruas e, consequentemente, da cidade, onde a tónica era colocada numa experimentação de âmbito existencial (como habitar uma cidade? Que vida pode ser construída, para além das funções que nos são dadas pelos espaços da modernidade?), transformou-se, agora, numa mero programa de habitação para todos. O habitat, a casa, era, para eles, da ordem do intolerável – uma interioridade da qual era necessário escapar. Tornou-se, agora, o horizonte aparentemente inultrapassável onde nos querem enclausurar.
De que se trata, então, neste livro que toma a cidade como tema principal? De fazer jogar, contra um certo modelo, uma outra forma de experimentar o espaço urbano e – porque não? – suburbano, de lançar, contra uma lógica puramente funcional que teria trocado uma articulação caótica de bairros heterogéneos entre si por uma ordenação racional do espaço urbano, uma experimentação desviante, derivante, que, por fim, prometeria devolver as pessoas às ruas e estas aos bairros.
“Pois, vendo bem, a expressão arquitectónica do capitalismo é constantemente dupla: zonas desprovidas de encanto, de ordenação precária e low-cost, onde armazenar em massa as mercadorias e aqueles que as consomem; sedes sociais high-tech e miríficas, construídas pelas estrelas da arquitectura mundial, onde os decisores contemplam o espaço banal e desencantado que os rodeia e os faz viver.”
Esta distinção que Bégout estabelece entre uma cidade funcional, limpa, com as suas “sedes sociais high-tech” e, por outro lado, o imenso subúrbio sem limite e sem fim que a circunda – “espaço banal e desencantado”, “zonas desprovidas de encanto” –acabou por se transformar, nos últimos decénios, num lugar-comum do pensamento contemporâneo. Basta lembrar, por exemplo, uma certa estética que se debruça sobre terrenos vazios, sobre ruínas, sobre lugares que parecem abandonados ou desprovidos de funcionalidade, ou a enorme quantidade de séries e filmes cujo dispositivo é sempre o mesmo: algo – um vírus ou outra coisa qualquer -, que se encontra ao mesmo tempo no interior e no exterior da sociedade, é uma ameaça suspensa sobre a cabeça de todos, precipita-se sobre o mundo. E os termos aqui importam, porque essa precipitação implica uma indistinção entre uma ameaça que pode ter origens artificiais e um fenómeno tão natural quanto a chuva – como se a catástrofe fosse inevitável e, tal como a chuva, chegasse desprovida de qualquer sentido. O impensado de todas essas séries e filmes talvez se situe exactamente nesta topologia de que fala Bégout: é o subúrbio, que se situa no limite da cidade, ao mesmo tempo interior e exterior ao espaço urbano, que surge sempre sob a forma de ameaça, seja ela tumultos, revoltas e carros incendiados, como nos arredores de Paris, ou quando os negros dos arrabaldes de Lisboa “ocuparam”, sob forte vigilância policial, o centro de Lisboa. O subúrbio é violência, é o estrangeiro, é a ameaça constante que paira sobre a cidade funcional e que está sempre na iminência de a transformar num campo de guerra – podendo ocupar, inclusive, os seus lugares dentro da cidade.
O mérito do livro de Bégout – que já escreveu sobre Las Vegas, por exemplo – reside na forma como, ao mesmo tempo que apela a uma lógica que reforça constantemente essa distinção rígida, acabar por permitir pensar a emergência, no espaço contemporâneo, de um conceito que acaba por suplantar essa mesma distinção: o lazer, conceito que se rebate e estende sob todo o tecido urbano contemporâneo ao ponto de, em certos lugares, ser já quase impossível encontrar essas “zonas desprovidas de encanto”.
“O coroamento da psicogeografia consiste, na verdade, na construção de situações, nomeadamente dos momentos de participação, de festa, de autonomia, dos momentos em que os indivíduos aumentam o seu sentimento de existência e realizam, sem mediação nem ordem, desejos pessoais, espaços-tempos originais de expressão, de libertação, de jogo”
É interessante ver que bastaria rasurar o termo “psicogeografia”, que remete desde logo para um contexto determinado, para que a citação nos falasse, já não de um programa revolucionário que pretendia modificar a experiência urbana, mas de fenómenos tão comuns agora como o centro comercial, os parques de diversão ou o centro das nossas cidades. Os parques de diversão, aliás, merecem um estudo que em parte já está efectuado por Marc Augé, entre outros (incluindo o próprio Bégout): são espaços fora do espaço onde cabem todas as temporalidades e todos os lugares diferentes que conhecemos, desde o faroeste norte-americano, ao antigo Egipto, passando pelas tribos índias, pelo continente asiático, pelas figuras do imaginário e da fantasia, pelos nossos terrores nocturnos e os nossos contos de fadas; tudo isso glorificado, cantado em êxtase e em delírio, por um fogo de artifício que se repete todos os dias e, como se trata de um espaço fora do espaço e do tempo comum, para todo o sempre.
Esta captura, digamos assim, que o capitalismo faz de tudo quanto foi, num dado momento, exterior e antagónico a ele, é bastante conhecida e mede a mutação antropológica em curso: a indistinção entre vida e trabalho, por exemplo, presente em certos movimentos vindos do contexto artístico ou mesmo no apagamento da vida diante da obra (basta lembrar Fernando Pessoa), redundou numa outra indistinção, aquela entre trabalho e vida, onde o mais comum dos gestos – lavar os dentes, pôr maquilhagem, vestir-se – é desde logo capturado por uma lógica comercial. Bruce Bégout sabe disso e, na verdade, é bastante injusto dar a entender que o parque de diversões contemporâneo, o centro comercial ou o centro das nossas cidades, é a aplicação na prática do pensamento de Guy Debord e companhia.
“Mas também aí não se pode imaginar, fazendo de advogado do diabo, uma indústria do lazer suficientemente subtil e astuta para realizar um programa situacionista? Designadamente, encorajando através das novas tecnologias a livre criação de si, a participação activa e comunitária, a invenção de novas ambiências.”
O que talvez se possa fazer, e isto é talvez mais interessante, é usar essa proximidade que existe entre uma lógica revolucionário que pretendia readquirir as cidades e as modificações actuais para conseguir pensar essa cidade-lazer que, no limite, torna obsoleta a distinção entre cidade e subúrbios – em todos os lugares começamos a encontrar ruas limpas, arranjadas, parques para famílias, lugares de lazer; em todos os lugares, é cada vez mais esta palavra que toma conta dos espaços.
A festa contínua que encontramos no centro das cidades, inundada de música e luz em todos os lugares, as “experiências” de toda a ordem e para todos os sentidos que somos convidados a experimentar constantemente, a permanente satisfação dos desejos pessoais, a criação constante de espaços-tempos expressivos onde o individuo detém a chave e o código, a forma como o espaço funcional foi dobrado para dar lugar a ambientes que falam, não para as massas, mas para cada um individualmente (não há nada mais avesso às massas que o centro das cidades, que vive de falar para cada um individualmente), tudo isto contribui para uma mutação, também antropológica – há uma sexualização do espaço de onde é retirada, no entanto, qualquer sexualidade –, que pretende impor o lazer como único modo de existência possível.
Talvez um dos gestos de resistência (mas a quê, se é tudo feito à nossa medida e segundo o nosso gosto?) resida em seguir até ao fim esse vazio que se deixa entrever na mutação antropológica em curso e que se inscreve em todo os assaltos aos sentidos com que somos confrontados no centro comercial, no centro das cidades, nos parques de diversões (e não se pode juntar o museu contemporâneo à lista?). “Libertar-se desta obsessão pelo domicílio.”, como refere Bégout, é fazer apelo para uma vida sem vestígios, “passageira, contraditória, excessiva, aleatória, que não procura eternizar-se em edifícios-monumentos”.