Está outra vez na crista da onda a questão da criminalização do enriquecimento ilícito. Aliás, o tema periodicamente vem à baila, há mais de uma década, seja quando muda o ciclo político, seja quando alguém individualmente ou em grupo (tendo esse alguém ou esse grupo meios de difundir a mensagem, bem entendido) apresenta essa criminalização como a panaceia universal para uma invocada doença geral de corrupção e afins. Uma espécie de vacina que travaria a alegada pandemia. Era assim em 2012, não é muito diferente em 2024, e pelo meio não foi muito diferente várias vezes. Cá estamos, pois, outra vez a adorar o bezerrinho de ouro que nos vai salvar da corja. Ora, não vou aqui repetir o que já disse outras vezes sobre isto, seja sobre a inutilidade, seja sobre o engano, a confusão, a distração ou, não menos importante, sobre os vários e sérios problemas jurídico-constitucionais (esse aborrecimento, esse excesso, esse travão fastidioso a panaceias universais e a banhas da cobra). Nada disso, hoje o propósito é mais singelo, e está expresso no título, sendo certo que o título não pretende aludir ao facto (que não é de somenos) de já termos em Portugal crimes que chegam e sobram para reprimir e perseguir as corrupções e afins (a questão não é falta de Lei, por muito que se queira acreditar que as soluções estão em acrescentar linhas, palavras e letras ao papel).
O título pretende aludir ao facto de termos em vigor a atual versão da Lei n.º 52/2019, de 31.7 (a qual, aliás, já teve cinco alterações, o que mostra bem como o legislador português não precisa de sildenafil – se não souberem o que é, vão por favor ao Dr. Google). E essa Lei prevê e pune o crime de desobediência qualificada e ocultação intencional de património (bom nome, por sinal, que faria arrepiar os cabelos aos velhos mestres penalistas). Na versão original, a Lei punia a omissão de declarações patrimoniais de titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, à entrada e à saída de funções, e pelo meio quando houvesse acréscimos patrimoniais. Em 2022, pela mãozinha hábil da Lei n.º 4/2022, de 6.1, acrescentou-se ao crime a omissão da declaração da origem dos acréscimos patrimoniais – e isto sob a influência de uma corrente de pensamento, na qual foi protagonista a ASJP, que defendia que a simples omissão de declaração não chegava. Pois bem, é crime, hoje, e simplificando, não declarar que se aumentou o património porque se recebeu um suborno, ou uma oferta indevida de vantagem, ou porque se teve uma participação económica em negócio ou uma prebenda vinda do tráfico de influência ou do abuso de poder, et cetera. E não é preciso mais, pois omitindo é crime. E a pena pode ir até 5 (cinco anos); não é, portanto, bagatela.
E então isto não é criminalização do enriquecimento ilícito? É, julgo eu, e aliás uma forma bem mais hábil do que as tentativas que, por exemplo, em 2012 e em 2015, levaram um eloquente não do Tribunal Constitucional. Bem mais hábil porque talvez vença duas das três objeções que aquele Tribunal identificou, a saber, a presunção da inocência e o princípio da legalidade, este na vertente da tipicidade ou determinação do facto incriminado. E bem mais hábil, também, porque passou mais ou menos despercebido, ao ponto de hoje se continuar a clamar pela «criminalização do enriquecimento ilícito», e, sobretudo, ao ponto de ainda não se ter dado suficiente atenção no espaço público ao expressivo artigo 18.º-A da dita Lei (no qual se prevê e pune o crime com o nome referido acima), e de ainda não se ter fiscalizado bem (nomeadamente no Tribunal Constitucional) os problemas constitucionais que o mesmo, descaradamente (acho eu), suscita, e que são principalmente dois. (Do que darei nota noutra ocasião.)
Advogado