Uns trazem uma lista, outros preferem vir à descoberta. Mafalda acredita que pode viver mil vidas através de um romance; João leva um saco cheio e ainda não terminou a sua volta; Maria partilha o que lê no Tik To e só este ano já leu 73 títulos. Adolescentes ou adultos, partilham a paixão pelos livros, onde encontram um escape e um refúgio para o cansaço do quotidiano.
Dizia George R. R. Martin: «Um leitor vive mil vidas antes de morrer. O homem que nunca lê vive apenas uma». O verão ainda não começou, mas o calor já queima. Por Lisboa esta é a altura em que se dá o tiro de partida para a temporada de festas e eventos. Se há quem prefira reservar o seu tempo para uma sardinhada nos Santos Populares, há quem tenha ansiosamente esperado pelo começo da Feira do Livro, que se prolonga até ao dia 16 de junho. Com 350 pavilhões e 85 mil títulos disponíveis, esta 94.ª edição conta receber um milhão de visitantes. Para aqueles que não querem ficar à espera de chegar a casa para começarem a saborear os livros acabados de comprar, há muitas zonas lounge onde nos podemos sentar e ler. Para aqueles que preferem alimento para o estômago, parece ter aumentado a oferta de barraquinhas de comida e bebida onde os visitantes se sentam a aguardar os seus autores preferidos.
Um momento aguardado
Há quem já tenha começado a fazer ‘piscinas’ nos quatro corredores paralelos do Parque Eduardo VII. Os pavilhões estão repletos de pessoas que os agarram e os folheiam. Outras pedem sugestões a quem lá se encontra a atender. Uns vêm com uma lista, outros deixam-se surpreender pelos livros com que se vai cruzando o seu olhar. Joana Americano, de 25 anos, já sabia ao que vinha. É leitora diária e a maior parte dos livros que lê são romances e obras de fantasia. De resto, estes pareceram ser os géneros preferidos dos jovens, que cada vez mais leem em língua inglesa.
«Gosto porque me faz sair da vida real. Dentro dos livros, muitas vezes, é tudo muito melhor. Há dias em que prefiro morar dentro dessa ficção», admite Joana. «De certa forma, os livros expõem e espelham coisas que eu posso sentir, ao mesmo tempo que me ajudam a ultrapassar obstáculos. As personagens podem estar a viver coisas semelhantes às que eu vivo», continua a jovem, que tanto lê em português como em inglês. Joana Americano tem uma página no Instagram onde partilha os seus hábitos de leitura e onde já fez amigos. Foi através dela que conheceu Ana Pires, de 26 anos. É de Torres Vedras e, todos os anos marca férias para esta altura, para estar «completamente disponível». «Gosto de procurar livros, deixar-me surpreender pelos que vão aparecendo, assistir à assinatura dos autógrafos e conhecer os autores. Aliás, todos os anos faço um orçamento só para os livros que vou comprar por aqui», revela. A sua paixão é tão grande que dedicou a sua vida profissional a isso. «Trabalho com livros. Sou livreira», conta com orgulho. «Os livros contam histórias que qualquer pessoa poderia viver e há muita coisa que as personagens vivem que acabam por nos trazer mensagens para a vida real. A fantasia é boa para fugir à realidade naqueles dias em que estamos cansados e queremos um refúgio», afirma. Este ano procura livros em inglês e em espanhol. «Há um ano comecei a ler inglês. Existem muitos sucessos que não são traduzidos ou estão mal traduzidos. E quero começar a ler em espanhol para praticar», acrescenta.
Fugir do digital e do acordo ortográfico
Mais acima, perto de um pavilhão repleto de livros policiais, encontra-se Mafalda Santos, de 35 anos. Numa mão, um saco já com algumas compras, na outra mais um livro que pretende adquirir. «Leio de tudo um pouco. Gosto muito de romance histórico e de policiais. Venho à feira do livro desde os 8 ou 9 anos. Já é um hábito», revela. Para Mafalda, o suporte físico é fundamental. «Vivemos numa era em que quase tudo é digital, tudo é informatizado pela internet. Eu gosto de ter o meu livro, tocar nele, cheirá-lo. É um momento em que estou em silêncio, apenas comigo mesma e consigo entrar numa história que não é minha. Viver mil vidas através de um livro», explica. Este ano vem em busca de livros de Helena Serrano que saíram há pouco tempo. «Mas acabo sempre por encontrar bagatelas a três euros. Já tenho aqui dois que custaram cinco euros cada. Além dos que tenho na minha lista, acabo por levar mais dois ou três», acrescenta. Uma das suas autoras preferidas é Margarida Rebelo Pinto.
João Caeiro, de 28 anos, encontra-se agachado para chegar aos livros que se encontram fora do olhar de quem passa. No ano passado leu 23. Tal como Mafalda Santos, lê um pouco de tudo, mas a fantasia é o seu género favorito. «Gosto do tipo de histórias que se desenrolam. É como se fosse um universo paralelo ao nosso, diferente, mas com coisas nossas também», explica. No entanto, este ano veio especialmente para ver o escritor João Tordo. «Gostava de lhe dar uma palavrinha. Gosto muito do trabalho dele». Quando vem à Feira sabe exatamente aquilo que procura. «Em termos de livros portugueses, estou um bocadinho reduzido, nomeadamente por causa do novo acordo ortográfico. Como é quase tudo escrito com o acordo e eu prefiro sem acordo, é chato. Leio mais em inglês. Acho que as traduções portuguesas também pecam um bocadinho», lamenta.
Ao lado de alguns pavilhões vemos escritores que, debaixo de uma sombra, aguardam que os leitores os venham abordar. No espaço de apresentação de livros, já há quem espere pelos autores. E também há funcionários de pavilhões, que do outro lado da banca, contam histórias às crianças que se metem em bicos de pés para conseguirem observar as ilustrações. Há zonas onde já é difícil circular. À medida que as horas vão passando, chegam cada vez mais pessoas.
Domingos Tomás tem 52 anos e vem de Almada. Apesar de ainda não ter passado por todos os pavilhões que deseja visitar, já leva um saco de papel cheio de livros. Lê quase todos os dias e os seus temas de eleição estão relacionados com a História. «É uma forma de conhecer melhor a evolução de tudo o que se vê na televisão, por exemplo. Acho que lendo história se percebe melhor aquilo que se passa na atualidade e no futuro», defende. Não tem autores preferidos. Por norma, vem sempre à descoberta. «Sigo a historiadora Raquel Varela, mas mais ninguém. Só hoje já comprei quatro ou cinco livros e ainda não acabei a minha volta», afirma.
Perto dele, duas pré-adolescentes estão – cada uma delas – com dois livros na mão. Os seus olhos brilham. Sofia tem 13 anos e começou a ler no 5.º ano, no seguimento de um projeto da escola. Todas as manhãs, os alunos liam pelo menos 10 minutos. «Foi assim que me apaixonei pelos livros. Desde essa altura que se tornou um hábito. Leio uma horinha por dia», lembra. «Gosto muito de ler fantasia porque é um mundo fora da nossa realidade. Consigo fugir de todos os problemas. Ainda não faço listas, venho só há descoberta, mas acho que as pessoas da minha idade deviam ler mais. Os livros são muito especiais», refere com uma voz envergonhada. Clara é sua amiga e tem a mesma idade. Começou a ler regularmente no sexto ano e, tal como Sofia, gosta de romances e fantasia. «Talvez goste muito de romances por me fazerem criar expectativas e sonhar com o amor», admite.
Mas nem toda a gente tem o tempo que gostaria para parar e ‘petiscar’ um livro. Judite Afonso tem 59 anos e encontra-se a escolher livros a preços low cost. «Quando era mais nova, todos os momentos mortos eram passados com um livro na mão. Depois, com o passar do tempo, a disponibilidade reduziu-se e a azáfama do dia-a-dia tirou-me um bocadinho isso», lamenta. Vai comprando livros, mas a verdade é que muitos ficam a ganhar pó nas estantes. «Não consigo deixar de comprar, porque continuo a ler e acredito que quando me reformar vou regressar a todos eles», garante. «Gosto de ler livros policiais, livros de culinária, adoro livros clássicos», enumera. Gostaria que os jovens lessem mais. «Tenho sempre algum receio que esse hábito se perca entre os mais jovens. Precisamos de pessoas interessadas, pessoas informadas. Quem me dera poder regressar atrás e ler de novo todos os livros pelos quais me apaixonei».
Os booktokers
Pelo que vamos vendo no recinto da feira, Judite Afonso não tem motivos para se preocupar com os mais novos. Se antes os amantes de literatura se deslocavam às livrarias para escolher e comprar livros, agora, através da internet estes chegam-nos de uma maneira rápida e eficaz. Pode até parecer estranho que uma rede social conhecida pelos seus vídeos curtos, danças virais e desafios controversos seja também um ambiente de incentivo à leitura, mas a verdade é o Tik Tok tem feito crescer os chamados booktokers – uma nova geração de divulgadores literários que acabam por dar novo fôlego à venda de livros, não só em Portugal como um pouco por todo o mundo.
Beatriz Botelho faz parte dessa geração. A jovem de 25 anos considera-se acelerada e extrovertida, o que lhe traz «uma quantidade absurda de ideias e energia para dar e vender». A sua relação com os livros é mesmo isso. «Uma necessidade de ser um pouco mais do que eu mesma e ‘escapar’ à realidade. Sou a Beatriz da vida real, com um trabalho a full-time, sou a Bea em casa a ler imersa no meu mundo, e sou a Bea do bookstagram/booktok que partilha o que lê», revela. Chegar a casa ao fim de um dia de trabalho e sentar-se no sofá a ler é para ela uma necessidade. «É como se desligasse o mundo real. As histórias são algo que não exige nada de mim, apenas ler e aproveitar. Não vou para lado nenhum sem levar um livro (ou dois, ou três) ou o meu e-reader», continua.
Todos os anos, em Janeiro, define a meta de quantos livros quer ler. «Acho que leio uma média de 30 a 50 livros por ano. Gosto de pensar que é um livro por semana, está ótimo. Mas não me forço a ler. Aprendi recentemente a parar de ler livros dos quais não estou a gostar. E melhorou a minha experiência de leitura em 500%», admite. Mensalmente, tanto pode ler nove livros como ler três. «Não existe uma pressão de cumprir um calendário literário nem de alcançar a minha meta anual. Afinal, fui eu que a meti. Comecei este ano com a meta de ler 25 e já aumentei para 40», sublinha. Interrogada sobre o seu género preferido, responde que é uma pergunta complicada. Nunca conseguiu decidir se gosta mais de fantasia ou de comédias românticas. Depende do estado de espírito. «Livros de fantasia são mais complexos, obrigam a ler com uma atenção extra para apanhar todos os pormenores porque podem ser relevantes. É entrar mesmo num mundo diferente do nosso com personagens geralmente mais complexas. Eu gosto disso, de pessoas com asas, cidades feitas de vidro, etc.», explica. Por vezes, liga-se de tal forma às personagens que acaba por chorar com elas. Por outro lado, adora comédias românticas, porque também gosta de se rir com os livros.
Começou a partilhar esta sua paixão no Instagram em Janeiro de 2023, quando estava desempregada. Já tem quase 2 mil seguidores. «Adoro a comunidade literária em que me inseri. Tenho um chat de grupo no Instagram onde partilho leituras e incentivo as pessoas a partilharem comigo também». O Tik Tok é mais recente, tem apenas um mês, mas já possui muitas partilhas. «O feedback é incrível. Fui igualmente bem recebida na comunidade do booktok e estou sempre a receber mensagens super fofas sobre a minha conta, as minhas opiniões e recomendações», revela. «Dantes aborrecia as minhas amigas a contar a história do livro e como chorei. Elas não se relacionavam tanto. Agora, continuo a aborrecê-las, mas posso ir a um dos meus canais de comunicação e haverá sempre alguém interessado em partilhar comigo a experiência de leitura do mesmo livro que eu li». E conclui: «a literatura une as pessoas». Este ano, será a primeira vez que representará as suas plataformas na Feira. «Confesso que estou um bocadinho nervosa. Estarei a fazer uma ação de divulgação com umas t-shirts e um pequeno jogo. Vai ser uma experiência diferente».
Maria Faria também já faz parte da comunidade dos booktokers. Começou a ler para imitar a mãe e o avô, que sempre leram muito. «Lembro-me de ser pequena e ir passar férias ao Algarve tanto com os meus avós como com os meus pais e irmos quase todos os dias à Feira do Livro comprar um livro novo porque eu acabava o livro quase só num dia de praia», recorda. Os livros acabaram por se tornar uma maneira de «viver imensas vidas na única vida que tem». O ano passado tinha o objetivo de ler 100 livros porque estava numa fase em que tinha muito tempo livre. «Acabei por ler 185», exclama orgulhosa. Este ano, tinha baixado a fasquia para 60 livros, por ter começado o mestrado. Até agora já leu 73. Quase não lê em casa, a não ser aos fins de semana. «Aproveito muito o meu tempo nos transportes públicos assim não sinto que esteja a ‘desperdiçar’ o meu tempo em deslocações», explica. Lê um pouco de tudo, mas prefere thrillers e livros de ficção contemporânea.
Começou a acompanhar conteúdo de livros no Tik Tok na altura da covid-19 e acabou por criar a sua página. Hoje, com mais de 20 mil seguidores, recebe imensas mensagens a pedir recomendações. «Também recebo muitas mensagens a dizerem que leram algum livro por minha causa e acabamos muitas vezes por discutir o que achámos dessa leitura», continua. «O ano passado na Feira do Livro de Lisboa fiz o meu primeiro painel com a Leya e duas meninas ficaram de propósito em Lisboa para me ir ver», acrescenta. Este ano, o objetivo é aumentar a sua coleção de livros de autores portugueses.