Apesar da persistente fragilidade do sistema de apoios à produção cinematográfica, uma nova geração tem sabido desenhar uma rede de diversas linguagens, e a recente conquista de Miguel Gomes do prémio de melhor realizador em Cannes vinca a aparição de um conjunto de cineastas que parece ter rompido de vez com um cinema que virava orgulhosamente costas a aspirações coletivas.
Subitamente, parece ter despontado um ecossistema, não uma nebulosa, mas algo de mais consistente, sobretudo por ser impossível encarar aquilo que se faz através da arte cinematográfica numa perspetiva miserabilista e redutora. Não se sabe por onde irá a seguir, e isso é a maior das promessas que nos faz o nosso cinema. Começa a ser possível pensar numa arquitetura dramática coletiva, feita para elevar uma população inteira à altura de uma conceção fortemente construída e elaborada do lugar que ocupamos no mundo.
Na conquista do prémio de melhor realizador na principal competição de longas metragens do Festival de Cannes, com Grand Tour, Miguel Gomes conseguiu um feito inédito para um cineasta português, sendo de relevar que haviam passado 18 anos desde a última vez que um filme do nosso país – Juventude em Marcha, de Pedro Costa – competiu àquele nível neste festival. Está ainda fresca na memória a conquista, em fevereiro do ano passado, de Mal Viver, de João Canijo, do Urso de Prata, na Berlinale, mas o que se tornou evidente é que começamos a habituar-nos a ver a nossa produção de cinema a assumir destaque entre o melhor do que se faz lá fora. Nem é fácil mapear ou limitar a perspetiva que agora se abre, e que, além dos já nomeados, conta ainda com nomes como João Salaviza, Cláudia Varejão, João Pedro Rodrigues, João Nicolau, Salomé Lamas, Leonor Teles, entre outros. E se a fragilidade da política cultural e do substrato socioeconómico do país continuam a garantir que apenas se afirma uma linha de resistência, e que privilegia naturalmente uma cinematografia de autor, a notável diversidade estética e temática dos filmes produzidos prova que o cinema português parece enfim disposto a cortar com certas disposições convencionais, a fazer não um caminho, mas bifurcar, criando uma rede onde o país se possa perder e também assumir essa petulância e atrevimento de se vincular a uma arte animada de uma sede de além, que não é característica dos místicos.
A fé, segundo Elie Faure, vem de um acordo obscuro entre o desenvolvimento intrínseco da própria arte e a mística que ela é chamada a servir, e se até há alguns anos o cinema português estava refém de códigos restritivos, de uma vivissecção dos seus meios e uma atitude maníaca de controlo que levava a um exercício um tanto somítico desse poder, e que o encostava às expressões dos antigos cânones, fosse do teatro ou da pintura, produzindo tantas vezes a sensação de estarmos perante produções que restringiam esta arte a uma reprodução estéril daqueles códigos, e dando lugar a um teatro refrigerado, hoje não temos de todo a sensação de que o cinema português seja limitador, mas sim uma expressão abrangente. Foi preciso esgotar-se inteiramente a paciência do público, que sempre bebeu a frescura em cursos de água que chegavam de fora, num inebriamento que assim se vingava do raquitismo e da inépcia de tantos criadores que insistiam em tropeçar nos destroços duma estrutura vinte vezes arruinada antes de a ultrapassarem, e que depois se valiam de discursos de cariz crítico sobre o sistema de produção de signos, atacando a suposta hegemonia de um regime comercial, procurando assim atribuir ao cinema uma função predeterminada enquanto mais outro regime de imposição do que já se sabe. Estes criadores, cheios de vitalidade no plano teórico, depois tinham de se conformar com um cinema muito admirado por aqueles que em vez o ver preferiam lê-lo depois dissecado nos jornais, nas folhas de sala e noutras publicações da especialidade, teimando-se num discurso que afirmava uma fé que depois estava de todo ausente daqueles filmes. Pareciam, por isso, meras tábuas carunchosas, ainda que pintadas de fresco, para nos servirmos de uma imagem de Faure, tábuas a que se agarravam no momento em que o barco se afunda aqueles que não sabiam nadar.
E neste naufrágio em câmara lenta, e que nos aborrecia a todos, ao ponto de o público ter virado costas ao cinema português, esses criadores foram sendo escudados por um bando seguidista, tantos deles promotores disfarçados de críticos que conseguiam assim ir à boleia, ser arrolados nessas produções, ou integrar as comitivas e participar em todos os beberetes, gozando o prato dos apoios institucionais.
Ainda que o cinema tenha já encontrado formas de reformar-se, persistem ainda entre nós estes agentes de algum modo coniventes, produzindo a mesma banha da cobra. Um certo discurso prevalecente, amiúde insuportavelmente pretensioso, segue num registo quase obscuro, fingindo dominar uma intricada trama de referências, que faz desfilar a propósito de tudo e nada, precisamente para não lhe ser atirado à cara a sua incapacidade de pensar e problematizar os filmes que vão vendo e sobre os quais prometem debruçar-se.
Poderia fazer-se uma crítica mais audaz partindo-se de um restrito lote de criações, como se foi fazendo naquelas décadas que viram surgir esta arte perturbadoramente nova, tantos artistas e ensaístas que não precisaram de assistir nas melhores condições a centenas ou até milhares de filmes, e assim mesmo compreenderam e foram bem mais cativantes nos textos que produziram ao pressentir o abalo profundo e a forma como o cinema veio sacudir e romper com convenções há muito cristalizadas. A propósito de A Marca do Zorro, filme de 1920, Elie Faure reconhece como há nele uma combinação estupenda de elementos, em que o acaso terá tido um papel decisivo, mas que atinge aquele que o via então como se estivesse diante de «uma qualquer colaboração sobrenatural de Velásquez, de Goya e de Manet – onde a perfeição dos meios técnicos e a força das luzes provocam mecanicamente efeitos que pensaríamos reservados à fantasia genial dos pintores, quando eram apenas o testemunho duma sensibilidade visual e espiritual superior ao comum».
Para este historiador de arte e ensaísta francês, o cinema aparece submetido a um sem número de influências, de tal modo que o acaso assume um papel capital quando aqueles meios foram oferecidos à imaginação dos primeiros cineastas que, mais do que dirigir, se deixaram levar pelas sugestões e revelações que esta nova arte lhes fazia. «São os acasos incessantemente repetidos que nos revelam o cinema e o revelam a si próprio. Não temos nada a ensinar-lhe. Ele tem tudo a ensinar-nos. Trabalhamos sob a sua sugestão».
Por cá, um certo discurso tendeu sempre a querer ditar aquilo que é possível descobrir diante da tela de cinema, confiscar esse efeito de expansão desaustinada e que força os sentidos a romperem com os anteriores pactos de apreensão e compreensão da realidade. «Fala-se sempre de restituir a vista aos cegos. É difícil», diz-nos Faure. «E porquê fazê-lo, se eles preferem não ver? Ainda não se aperceberam do que está debaixo dos seus olhos há séculos e séculos, enquanto os que não são cegos se confessam fatigados de o ver. Como veriam então essa obra que apenas se esboça e que até poucos dos que veem adivinham! Pois estamos perante uma arte nova, que é a do movimento, ou seja, do próprio princípio de todas as coisas que existem. E a menos convencional de todas. Uma imensa orquestra visual de que os escultores de baixos-relevos indianos e os pintores do drama das linhas e dos volumes em ação, Miguel Ângelo, Tintoretto, Rubens e Delacroix foram os percursores».
Do outro lado, a persistência desse cinema mortificado, procurando afirmar a sua diferença ao hipostasiar convenções em vigor há séculos, e que faziam de tudo para ignorar a perturbação dos novos meios técnicos, dando origem a esse teatro refrigerado, era uma forma de negação, de esconder de si mesmo como o cinema é uma linguagem absolutamente subversiva, na medida em que, como vinca Faure, nos liberta de «uma infinidade de ilusões, ou até de mentiras, para nos dirigir com uma rapidez maior ou menor, segundo o nosso poder pessoal de compreensão, até à apropriação de um mundo menos ilusório e de um sonho ainda por definir». Este «ensina-nos uma língua nova, de uma riqueza e complexidade tais, aliás, que – creio poder dizê-lo – todo o futuro não esgotará o seu tesouro».
É esta a fé que sempre faltou ao nosso cinema, de tal modo que alguns se aferraram às linguagens de antes, submetendo o cinema a uma senilidade tão precoce que nascia entre nós como uma arte mórbida, desgastante, incapaz de produzir qualquer denúncia dos processos e das linguagens que eram como a prata da casa, esses signos de uma herança cheia de peso sentimental. Não vale a pena dizer nomes, porque quase todo o cinema português ou se colocava numa atitude pavorosamente conservadora ou embarcava em estéreis imitações, que mais pareciam uma tentativa de falar outras línguas de forma arrastada, macarrónica, sem se livrar do sotaque.
Durante muito tempo se procurou reagir contra esse radiante naturalismo que esta linguagem permitia explorar e captar nessas aproximações intimistas, em tantos movimentos e cambiantes impercetíveis a olho nu, e que vieram assim expor os hábitos grosseiros que as anteriores convenções e modos de representação foram gradualmente infligindo à inteligência. Faure assinala o modo como era exigido do ator que acentuasse bastante a sua mímica, para que o distanciamento e a iluminação medíocre do palco não o impedissem de nos tocar.
Durante muito tempo, a inabilidade e mesmo a inapetência daqueles que experimentavam com os meios técnicos desta nova arte era vestida como uma opção artística, não um vício ou um aleijão, mas uma forma de resistência, um traço de carácter, um sinal da impermeabilidade às influências dissolventes do que chegava de fora. E, no entanto, o público marimbou-se nesses virtuosismos de pacotilha, e prestou atenção à forma como o cinema estava não só a influenciar o teatro, mas também a pintura, a escultura, a dança, a arquitetura e até a literatura, e, de forma ainda mais radical, a fotografia.
Entre nós, o cinema parecia alheado de todos essas novas subtilezas e complexidades, sendo depois tarefa dos críticos vir cobrir o seu reacionarismo e rezinguice de umas fantasias empoeiradas de uns seres enamorados da aristocracia dos seus processos. Hoje, tanto desse cinema só resiste enquanto arte documental e que preserva os códigos dessas artes que foram sendo avassaladas pelos prodígios da nova linguagem, e, por essa razão, até este século, com algumas honrosas exceções, o cinema português era menos uma arte do que um museu em homenagem a tudo aquilo que se perdeu. E esse cinema pouco tem a dizer-nos sobre a possibilidade de conferir um relevo intenso aos jogos da fisionomia e às atitudes do corpo, restituindo a esses jogos e a essas atitudes a sua dignidade.
«Ao derrubar a convenção mímica, que o estatismo da fotografia e do teatro exigia para os animar, entronizou o dinamismo da mais discreta e fugidia realidade», adianta Faure. Não é que a trote de mula, muitas vezes a contragosto, o cinema português não fosse integrando essas descobertas, revelando muitas vezes como toda aquela resistência era apenas um modo de lhe ser dado um desconto para ir recuperando o fôlego, mas quando reclamava para si algum avanço, estava imerso no pó dos caminhos da caravana que entretanto ia muito à frente, e enquanto tossia e apalpava o caminho, aproveitava para reclamar esse nevoeiro do seu retardo como um elemento de dignidade particular.
Enquanto Manoel de Oliveira embaraçava Agustina com as suas débeis recriações daquele universo romanesco, o filme russo lembrava já, «nos abismos que explora e por vezes ilumina com bruscos clarões, a análise de ondas indefinidamente prolongadas por Dostoievski».
É claro que esta perspetiva é bastante superficial, e exigiria um desenvolvimento e uma análise que se detivesse na filmografia de alguns dos nossos principais cineastas, mas também é certo que o nosso cinema é em grande medida devedor da influência da pintura e do teatro, da dança e da literatura, ao passo que seria muito difícil provar o inverso, ou seja, a influência que exerceu esta arte nascente sobre o trabalho dos artistas portugueses noutras áreas. E, no entanto, não se pode dizer que o cinema português tenha sido propriamente ignorado pela crítica, que falava deste recorrendo sempre a justificações que pareciam estranhas a essa linguagem da qual continuamos a esperar uma revelação e a admirar pela sua fenomenal capacidade de levar ao limite o poder do artifício, dando-nos a ver «mil e mil cambiantes e reflexos fisionómicos ainda ontem insuspeitados, mil e mil décimas de valores na progressão das luzes que esculpem, aflorando-a, a mobilidade da forma, mil e mil espaços novos que subitamente se abrem, se alargam lentamente ou se fecham de repente, mil e mil clarões que irrompem, se extinguem e se transformam sem parar, para modificarem, de mil e mil formas imprevistas, os aspetos da paisagem, do homem, das multidões, mil e mil frémitos de um mundo dito inanimado que há pouco não nos era percetível», como refere Faure.
A imaginação não aprendeu grande coisa com o cinema português, mas esses meios técnicos não deixaram de denunciar algo de capital sobre aqueles a quem são oferecidas condições para projetar o seu imaginário no grande ecrã. Se Faure e outros pensadores, que manifestaram o seu fascínio diante das aberturas que o cinema prometia, pareciam entusiasmados com o filme que, como o templo, é anónimo – e que, como o templo, «retira o seu princípio coletivo de meios financeiros que ultrapassam a capacidade do indivíduo, do grande número de figurantes que fazem pensar nos pedreiros e nos operários, dos seus atores que respondem com a sua mímica, oito séculos depois, aos gestos dos pintores, dos seus realizadores e técnicos que sucedem aos mestres-de-obras, das técnicas estandardizadas e mecânicas que encontrariam facilmente os seus equivalentes no princípio único da intersecção das ogivas e da estrutura das naves, e das vagas de multidões mescladas para quem um e outro são feitos» – por cá, em sentido contrário, ter-se-iam deparado com um cinema submetido ao privilégio daquele indivíduo que, acima de tudo, estava empenhado em assinar o filme e declará-lo como um produto exclusivo do seu génio.
Para Faure havia algo de promissor nessa arte que emergia ao serviço de um esforço social unânime capaz de nos libertar do individualismo, sem deixar de exaltar e utilizar todos os recursos espirituais do indivíduo para assegurar o desenvolvimento desse esforço. Mas para os cineastas portugueses o que estava em causa era ainda o seu poder de ditar, a sua condição autoral, a vã glória de mandar. O cinema devolvia-nos ao templo, era «o instrumento de comunhão mais incomparável de que o homem se terá ainda servido, pelo menos depois da grande arquitetura», mas não entre nós. Por aqui, o cinema era ainda um desdobramento da lógica da criação individual, uma pintura ou um romance feitos segundo a mesma autoridade implacável, mas com meios bem mais vastos, uma peça de teatro em que mesmo a perspetiva daquele que olha é restringida, focalizada, determinada por essa besta totalitária que é o cineasta português.