À primeira vista menos acidentado do que o século XX – que ficou marcado por duas guerras mundiais, pelo aparecimento dos Estados totalitários e por avanços tecnológicos assombrosos –, o século XIX, olhado com atenção, revela-se igualmente convulso e dramático. É o século de Napoleão e de Lincoln, da guerra civil americana e da abolição da escravatura, da independência do Brasil e da conferência de Berlim, da comuna de Paris e da unificação de Itália. É o século de Marx e de Nietzsche, de Dickens, Dostoiévski e Balzac. É, ainda, o século dos caminhos-de-ferro, da torre Eiffel, da invenção do telefone e do cinematógrafo. O século de Beethoven, Verdi e Wagner, do triunfo do romantismo e dos impressionistas.
Em Portugal foi o século de Garrett e Herculano, de Antero e Oliveira Martins, de Camilo e Eça.
Mas hoje vamos falar sobretudo de política, a propósito da reedição de A Monarquia Constitucional – 1807-1910 (ed. D. Quixote). Para quem conhece um pouco da toponímia de Lisboa, os nomes são familiares: Saldanha e Fontes Pereira de Melo, Passos Manuel e Duque de Loulé, entre muitos outros.
Nascida em Lisboa em 1948, Maria de Fátima Bonifácio, a autora desta síntese da vida política no século XIX português, entrou para a Faculdade de Letras no início da década de 1970 para cursar História. Estava no terceiro ano quando se deu o 25 de Abril. «Durante um ano não me inscrevi na faculdade porque estava a viver a revolução». Retomou os estudos ao fim de um ano de «maluqueiras», e terminou com uma média brilhante. Durante quatro anos trabalhou na RTP, até que um dia recebeu um telefonema do catedrático Joel Serrão a convidá-la para ser sua assistente. Agarrou a oportunidade com as duas mãos.
«Nunca estudei tanto como nesse verão que antecedeu a minha entrada para a faculdade, porque me deram uma cadeira brutal, História Económica e Social do Antigo Regime na Europa», recorda. Quando passou para a História Política de Portugal do século XIX sentiu-se «como peixinho na água».
Autora de vários livros na sua área de especialidade, como uma biografia de Rodrigo da Fonseca (Um Homem Singular) e uma História de Violência Política – Portugal de 1834 a 1851, tem assinado também inúmeros artigos na imprensa, por vezes polémicos, sobre temas da atualidade. Um deles, em que se insurgia contra as quotas para a entrada de alunos dos PALOP nas universidades, gerou uma onda de indignação e valeu-lhe um processo por ‘racismo’ e ‘discurso de ódio’ que se arrastou por quatro anos. Foi ilibada. «Está encerrado».
Resumir o século XIX português em menos de 200 páginas é um feito de concisão. Há a ida da Família Real para o Brasil, as invasões napoleónicas, a guerra civil… é muita coisa a acontecer.
Muita coisa a acontecer. Mas acho que consegui dar-lhe um nexo de racionalidade, se assim me posso exprimir.
Vê a ida da Família Real para o Brasil como uma deserção ou como uma grande jogada estratégica?
Vejo-a como uma fuga. Aqui ao lado [em Espanha], Fernando VII deixou-se estar, foi preso pelos franceses – ele e a família toda –, esteve uns anos em Bayonne preso, e quando regressou não foi como um fugitivo, mas com a alegria do povo espanhol.
Julgo que o D. João VI andou a tentar negociar com os franceses até ao fim.
Mas pelo menos podia ter deixado cá um príncipe de sangue, por exemplo o [futuro] D. Pedro IV, ou alguém que o representasse. Mas não, pegou em armas e bagagens e partiu. Aquilo foi uma correria, fugiu quando o Junot já estava a chegar a Lisboa. Depois instalou-se no Brasil, gostou imenso daquilo, aclimatou-se completamente, e fez muitas obras, inclusive uma biblioteca lindíssima no Rio de Janeiro [a atual Biblioteca Nacional do Brasil], construiu fortes ao longo da costa toda, o que permitiu ao Brasil ter…
Um sistema de defesa?
Proteger as suas fronteiras. Foram muitos, aí uns 17 ou 18 fortes. Fez imensa coisa. Ao ponto de os brasileiros quererem indemnizar Portugal.
Isso é surpreendente!
Pouca gente sabe. Mas eu li o tratado de 29 de agosto de 1825 e lembro-me perfeitamente de estar lá essa cláusula de recuperação da liberdade que o Brasil pagou generosamente.
A ‘transplantação’ da corte acelera o processo da independência do Brasil.
Levaram para lá toda a administração pública. O Brasil desenvolveu-se e acabou por se insurgir contra a dependência de Portugal. Cá, pelo contrário, lamentava-se imenso que o Brasil nos tratasse como se fosse Portugal a colónia e não a sede da monarquia, porque a sede da monarquia estava de facto no Rio de Janeiro.
Mas também trouxemos muita coisa de lá. Açúcar, ouro, diamantes, madeiras…
No que toca a obras de arte e coisas desse género que saqueámos – porque o tráfico negreiro era legalíssimo, mas roubar não era legal – acho bem que se devolva. Agora, que se dê dinheiro para reparações não concordo.
Há tempos André Ventura disse que se nós temos de pagar reparações, então as ex-colónias também têm de nos pagar as escolas, as estradas, as barragens que lá fizemos. Acha que faz sentido ver a História como uma conta de deve e haver – o que demos, o que levámos?
Não faz sentido porque não é possível avaliar. Como é que vai avaliar o que os portugueses construíram e deixaram em cada colónia? Como avalia isso? Este forte vale quanto? Este palácio vale quanto? Esta estrada vale quanto?
Não há maneira de quantificar, é isso?
Não há maneira de quantificar. Norton de Matos, que foi ministro da República para as Colónias, era obcecado com a ideia de instruir a garotada. Fez uma quantidade de escolas. Quanto é que isso vale? É capaz de me dizer?
Eu não sou.
Pois não, nem ninguém.
Imagino que estas questões andassem muito arredadas do ensino quando fez o seu curso de História, antes do 25 de Abril.
O 25 de Abril calhou a meio do meu curso, estava eu no terceiro ano. E durante um ano não me inscrevi na faculdade porque andava a viver a revolução – aquelas maluqueiras da juventude.
Aderiu com entusiasmo à revolução?
Aderi com muito entusiasmo. Andei um ano a gritar ‘O povo unido jamais será vencido’ e outros disparates maiores ainda. [risos] Mas percebi muito cedo que aquilo estava a ir por mau caminho.
Por sinais que ia captando, pelo que lia nos jornais…?
Olhe, para começar, a censura era óbvia.
A censura? Depois do 25 de Abril?
Durante o PREC a censura era óbvia. Para lhe dar um exemplo, o José Saramago, o nosso grande escritor, foi para diretor do Diário de Notícias. Saneou logo uma quantidade de jornalistas. E só passava aquilo que ele aprovava. E os desmandos na rua, a barafunda, as constantes manifestações… Já não se sabia onde estava o poder, a alturas tantas acho que o homem que mandava mais em Portugal era o Otelo. Por aqui já se vê onde as coisas chegaram. Para mim, o mistério era como é que o general Costa Gomes consentia naquela desordem e naquela apropriação de todos os poderes pelos militares do MFA e do COPCON…
Achava que ele era demasiado conivente?
Ele foi conivente mas tinha um trunfo de que nunca abriu mão. Queria eleições em 75, e foi aí que eles se tramaram, porque viu-se que o Partido Comunista tinha 12% dos votos, não valia nada, os outros partidos MR e ML [de extrema-esquerda] não contavam para nada. As Constituintes já foram muito lesivas para o PCP, e depois nas eleições legislativas em 76 a coisa correu ainda pior para o PCP. A partir daí entrámos numa democracia mais ou menos normal.
O ambiente na universidade mudou muito com o 25 de Abril?
Mudou. Completamente.
Para melhor ou para pior?
Para muito pior. Só para ver o descalabro a que chegou, a alturas tantas, além do PREC, além dos professores que foram saneados, eram os alunos que davam as notas uns aos outros. Acha normal? E os professores sujeitavam-se a isso.
E os currículos mudaram?
Mantiveram-se mais ou menos. Nem havia wokes nessa altura, graças a Deus. Mas era uma balbúrdia. Quem mandava na faculdade era a RGA, reunião geral de alunos. Votámos o saneamento de muita gente.
Por serem de direita?
Eram ex-salazaristas, portanto ‘fora!’… Posso só ir buscar os meus cigarros?
Claro que sim.
[Regressa dali a pouco com uma cigarreira bem aprovisionada, um isqueiro e um exemplar de A Monarquia Constitucional na mão]
Hoje era incapaz de escrever este livro. Escrevi-o todo de cor.
Não precisou de consultar livros, arquivos?
Não precisei de consultar nada, tinha tudo na cabeça. Dediquei anos a investigar sobre o século XIX. Por exemplo, para fazer a biografia do Rodrigo da Fonseca estive dois anos encafuada num gabinete que me deram na Biblioteca Nacional, a ler os diários da Câmara de Deputados – e da Câmara Alta, porque ele depois foi feito par do reino.
Esses diários eram interessantes ou eram uma chatice?
Torna-se um bocadinho cansativo, porque só me interessavam as intervenções do Rodrigo, e tinha de ver aquilo página a página… São muitos milhares de páginas. Passei dois anos a ler e a tirar notas. Portanto conhecia aquilo já em muito pormenor. O grande problema do século XIX é que houve sempre um conflito insanável, embora sussurrado… Quando o D. Miguel regressa e é aclamado Rei, os liberais já estavam divididos. Tanto que o lado radical foi para França, com o Saldanha, e o lado fiel ao D. Pedro foi para Inglaterra e por lá se manteve uns anos, até chegar o D. Pedro IV. O que aliás é muito engraçado, porque li uma carta dele, escrita quando vinha no barco, a dizer que não sabia se ia para a Baviera viver com a sogra ou se ia fazer outra coisa qualquer.
Nem sequer falava de vir reclamar o trono.
Ainda não tinha tomado nenhuma decisão. Temos a ideia de que o D. Pedro era muito aficionado da causa liberal portuguesa, o que é falso. Mas para acabar o raciocínio: essa fratura entre liberais e democratas foi colada com cuspo durante a Guerra Civil – apesar de tudo, durante a Guerra Civil não se podiam dar ao luxo de estar com quezílias políticas – mas veio imediatamente ao de cima a seguir a 1834.
Liberais e democratas não eram a mesma coisa? Nós temos tendência a associar os dois conceitos.
Temos porque vem tudo da mesma fonte histórica, que é a Revolução Francesa. Mas essa confusão é ignorância. O que os radicais queriam era uma república – sem disfarce. Fizeram a Revolução de Setembro em 1836, e a tropa absteve-se. Alguns políticos queriam uma Constituição abertamente republicana; em alternativa, fizeram uma Constituição em que diziam que respeitavam a fórmula tradicional – ‘Em nome de Deus, da Monarquia Portuguesa…’ –, ou seja, mantiveram no cabeçalho aquele relambório típico das cartas constitucionais, mas depois o Rei não tinha poderes para nada. Não podia demitir a assembleia, não mandava no governo… Era uma república disfarçada de monarquia.
Isso foi o princípio do fim da monarquia?
Depois o Passos [Manuel] governou em ditadura – ou seja, com o Parlamento fechado – e houve vários governos em ditadura, o que não queria dizer que as liberdades, direitos e garantias fossem beliscados. Era mesmo só governar por decreto, com o Parlamento fechado. Até que em 1842, seis anos depois da Revolução de Setembro, a Rainha chama o Costa Cabral, que era juiz nos Açores e tinha fama de ser um homem duro. O Costa Cabral decidiu abolir a Constituição de 1838, a tal feita sob a vigilância do Passos, e fez um pronunciamento. Foi ao Porto com um pretexto qualquer e as tropas começaram a convergir. Vieram por aí abaixo, parecia uma repetição de 1822, foram-se juntando mais tropas durante o percurso, e chegaram a Lisboa numa posição de força. A Rainha demitiu imediatamente o governo que estava em funções.
Isso faz lembrar a Marcha sobre Roma, em 1922. Mussolini chega com aqueles milhares de homens e o Rei demite o governo e entrega-lhe o poder.
Só que aí eram civis, os militares não entraram, mas tem essa semelhança, de facto. Foi na sequência desse pronunciamento que se pôde, sem convocar Constituintes, abolir pura e simplesmente a Constituição de 1838. Voltaram a pôr em vigor a Carta Constitucional outorgada por D. Pedro em 1826 – e portanto a Rainha recuperou todos os poderes que a Constituição de 38 lhe tinha tirado. Costa Cabral era realmente um tipo muito duro, odiava os democratas, e governava ditatorialmente. Fez-se umas eleições para as Cortes, com os amiguinhos dele. Na verdade, as eleições eram uma farsa. E os democratas ficaram absolutamente furiosos.