Leio as frases, entendo o seu ritmo. Estou frente a frente com um homem que luta contra si próprio e contra a diversidade dos seus sentimentos. Só se Salva o Amor não é apenas o novo disco do João Gil. É o momento em que se questiona e procura responder-se. Como se se resolvesse. Amizade à parte, que não a escondo, vejo-o à procura de algo no fundo de si mesmo. É preciso sentir, sentir sempre, a vida não corre como um ribeiro, é muito mais uma extensão da fúria do mar. As letras não são todas dele. ‘Ao Deus Dará’ tem a assinatura de Paulo Ribeiro; ‘Não Era a Vida que_Eu Queria’ é de Maria do Rosário Pedreira. Depois é o homem e o seu espelho. Ou o homem através do espelho. Só ele o pode dizer. Mas fomos à procura das palavras e do que significam as palavras.
«És a nossa Brigitte Bardot
Por seres tão bonita não se acreditou
Com certeza que é Veneza
Que Aveiro não chega p’ra tanta beleza
A nossa Manchester faz muita lã
Num sítio pequeno como a Covilhã
Alguém diga afinal
Onde fica Portugal?»
Afinal já descobriste onde fica Portugal?
Já descobri sim senhor, Portugal fica algures entre o passado na espada de D. Afonso Henriques, na epopeia marítima, na colonização e na expansão territorial, nos feitos desportivos e fadistas, e a omnipresença do Mar, o Sol e Praias, a mistura de raças que nos trouxe até aqui, o desejo de partir e o prazer de chegar sempre ao cais do desembarque, para além de, claro, alguma ambição de ser forte. Portugal está dentro de nós, em cada um e poucas vezes em todos ao mesmo tempo.
«Vais dizer que só há uma
Esta terra e mais nenhuma
Queima fitas, bebe um fino
Quebra o ciclo do Destino.
Vivemos num país triste? Ou é a tristeza que está em nós?
Talvez se explique pela contemplação de tanto mar que nos banha. Talvez pela quantidade de gente que vemos emigrar, a Ditadura agravou e entranhou aquilo que já vinha de trás, uma certa sonsice e tristeza fingida de quem tenta vender alguma coisa. É uma tristeza mais cantada e fingida. Os Portugueses são alegres mas escondem-no.
«Vai meu Irmão
sai desse buraco
vem pra junto de nós
Sai meu irmão
sai dessa escuridão
sai desse dia não
E quem te fez assim tão mal?
e porque vais assim tão só?»
É falta de crença em nós próprios?
Talvez alguma falta de auto estima. Os portugueses já perceberam que todo o Mundo quer vir cá, comer da nossa comida, andar à toa e descobrir um País longe da penumbra do céu nublado, beber copos até à exaustão e em segurança, os milhões de pessoas que nos visitam descobrem e levam de volta a nossa verdadeira génese, um povo meigo e hiper simpático, sempre disponível para ajudar sem qualquer imposição de Língua. Somos nós que fazemos o primeiro esforço de facilitação.
«Sou do tempo a preto e branco
E para ser muito franco
Do machado ao pensamento
Da mordaça sentimento
E quando o sol nasceu
Raiou no infinito
Foi a luz que amanheceu
No dia mais bonito».
Ainda continuas a acreditar no dia mais bonito?
O dia mais bonito iniciou os primeiros passos da Democracia e a partir daí é sempre a melhorar. O regime democrático é um edifício em permanente construção e permite que em Liberdade se façam as mudanças para que as pessoas vivam melhor. A pobreza persiste e esse é o grande problema por resolver.
«Já lá vai a má memória
Já lá vai a escuridão
Foi assim a nossa história
Até dizermos não».
Lembras-te de como o viveste?
Sim , foi inesquecível. Cheguei ao Chiado ainda muito cedo e andei a correr por todo o lado a fazer número para que os militares sentissem que o Povo estava com eles. As pessoas não paravam de chegar e tornou-se invencível. As ruas ficaram pequenas e a Liberdade tomou conta de nós.
«E em tempos de incerteza
São difíceis na pobreza
Mas temos uma certeza
Liberdade não é tristeza».
Mas os tempos da pobreza e da incerteza continuam aí, não achas?
Sim, a Pobreza e as assimetrias sociais, os salários baixos, o mérito não premiado, a Demagogia e o Populismo, A Xenofobia e o Racismo, continuam por aí e em força.
«Ondas do Mar
Não façam chorar
Devolvam esse corpo
Ainda a respirar
E quem te fez assim tão mal?
e porque vais assim tão só?
Fecha a janela
Do vento que gela
Não deixes entrar
O silêncio de cortar»
Mais a cores ou ainda a preto e branco?
Definitivamente a cores e cada vez mais garridas.
“Vivo rodeado
de música por
todos os lados”
«Ando de bolsos vazios
a matar a solidão.
Minha terra são baldios:
não tenho tecto nem chão.
Se passo, ninguém me vê,
que a miséria é transparente;
e um pobre, não sei porquê,
incomoda muita gente.
Não era a vida que eu queria.
Como outros, também sonhei.
Nos braços da fantasia,
fui imperador fui rei
a miséria não tem cura
se mais ninguém ajudar.
É toda matéria escura,
como a noite sem luar.
Não era a vida que eu queria.»
Tiveste a vida que querias?
Acho que sim, feliz por ter nascido numa família incrível, ser Beirão e ter a sorte de viver rodeado de Música por todos os lados e de ter o bambúrrio de sorte na Mulher e Filhos tão especiais.
«No jornal ou na revista
Está sempre bem à vista
Seja o mais narcisista
Paternalista ou mais moralista
Antigamente é que era bom
Estava sempre tudo bem
Andava tudo direitinho
Autoridade e respeitinho
Para muitos a gramática
Não é Bíblia ou estática
Para outros tolerância
Da absoluta redundância
À cervical do cardeal
À besta do bestial
À cena que é viral
Ao imposto sazonal
Mas por favor
Não digas que está tudo mal
Faz um esforço
Alguma coisa há-de estar bem
Fala por ti
Fala por ti»
Ainda sonhas com quê?
Ainda sonho com voos nocturnos pelos telhados e varandas de Lisboa em movimentos de natação em estilo de bruços. Acho que tenho de ser visto…
O João é um homem de sonhos. Sempre foi. Povoou de sonhos as suas músicas, durante muito tempo (talvez demasiado tempo) cantadas por outros. Abriu as asas e nadou em vês de voar. Mas nadou na água azul do céu em tantos momentos que recordamos da sua já tão longa carreira. Uma vez, noutra entrevista, confessou-me: «O rapazinho da Covilhã ainda existe aqui dentro». Nestas mesmas páginas falámos muito. E repito-me, sempre que necessário: para mim, ele será sempre o camisola dez. O camisola dez que puxa pela humildade da sua pessoa para ser o eterno rapazinho que veio da Covilhã ao encontro da cidade, à procura do mundo e de uma vida de liberdade que, de repente, encheu de cravos vermelhos e alegres este país sempre tão teimosamente triste. Agora, no seu novo álbum, encontramos a tristeza e a saudade de mão dada com a esperança e uma certa revolta contra a vida-vidinha que nos tolhe, a nós, os habitante do país que o mar não quer, como dizia Ruy Belo, esse poeta injustamente esquecido.
«Hoje vi um homem só
A pregar palavras no deserto
Tão incerto
O silêncio não desfaz o nó
Acenava à multidão
E as coisas que dizia
Parecia que toda a gente
Lhe dava razão
Falava de paz
Em tempos de guerra
Ninguém quer ouvir
Esgrimir vingança
Dança ( tão ) cega e casas a ruir».
Onde fica o teu abrigo?
O meu Abrigo é a minha família, os meus amigos e o povo a que pertenço. Sinto-me bem entre nós. Devo-lhe tudo.
«Esquecer é morrer
Ao entardecer de viver
Gritar e denunciar
É não alinhar
Não é apenas salvar a memória
Não difamatória
É ter uma história,
Uma história contraditória
É uma vitória
Uma vitória
A nossa vitória
Fugir para a linha da frente
Para a frente de combate».
Onde defrontaste a tua maior escuridão?
Quando perdi os meus Pais e o meu Irmão Zé.
Conseguiste sair dela?
É uma aprendizagem difícil ter de lidar com a ausência mas sabemos que os nossos ente queridos persistem em nós e estão sempre presentes._
“Andei ao Deus dará no meu tempo de estudante”
«Tenho andado ao Deus – dará
Mais para lá do que pra cá
sem saber às quantas ando
Vivo em casa dos meus pais
O dinheiro não dá para mais
Por aqui me vou ficando
À mesa de cabeceira
Rezo à Santa Padroeira
Mas não sinto a devoção
É uma questão de crença
O que faz toda diferença
É o povo em comunhão ».
_
Qual foi o tempo em que andaste ao Deus dará?
Só andei ao Deus dará enquanto estudante, um desastre.
Falas de um antigamente em que era tudo bom. Na realidade, antigamente havia algo de bom?
A nossa história é feita de tudo e aprendemos muito com todas as coisas que nos aconteceram e que fizemos acontecer a outros povos. O presente é mais colorido e tentaremos fazer cada vez melhor.
«Eu nunca perdi a esperança
Pois quem luta sempre alcança
Eu que sou um resistente
Sei que vai acontecer
O amor há-de vencer
É a salvação da gente
Sei que vai acontecer
O amor há-de vencer
É a salvação da gente».
Que fazes tu contra o que está mal?
Dou o meu melhor.
«Não há mercúriocromo
Ou desinfectante
Não há tolerância nem distância
Para as feridas da infância
Não há cura nem esquecimento
É desmembramento
Num corpo de si ausente
Em fúria persistente
E raiva calada
De ançaime amordaçada
Que maçada!
Fugir para a linha da frente
Para a frente de combate».
Não tens medo de andar a pregar no deserto?
Não há que ter medo de colidir com a opinião vigente e divergir quando é necessário, se necessário.
Que sentes que a tua memória precisa de conservar?
A memória das vozes e dos sons da memória. Assim se faz música.
Qual a maior das tuas vitórias?
Ser Pai, Amar e ser amado.
«Não é o tempo
Nem é apenas
É apenas um momento
Nem a tolerância cria a distância
Não há nada que apague
Nem massagem que afague
Nem nada que pague!
Fugir para a frente,
Saiam da frente
Saiam da frente
Não me façam frente
Fugir para a linha da frente
Para a frente de combate».
Tens feridas da infância? Quais?
Não tenho feridas de infância mas sei quem as teve e o quanto é difícil sair vencedor.
_
«Nasci longe muito longe
Entre muitos meus irmãos
Vieram todos no mesmo barco
Com o medo entre as mãos
A boneca da minha irmão
Não fez de Cindy brincadeira
Não teve tempo de infância
Prematura morte matreira
E as aves que pousam no meu ombro
Não têm medo de mim
Voam por cima das águas
À procura do seu fim
Nasci pobre como ela
Entre muitos, meus irmãos
Ela tinha doze anos
É agora uma estrela».
Este será o disco em que mais te expões?
Este é o álbum em que exponho mais aquilo que vejo à nossa volta.
E o de maior intervenção?
Lanço as chamas para o ar, coisas que estão a acontecer por todo o lado, e como esponjas que somos, deitamos cá pra fora o que vamos absorvendo- a dor dos outros, a dança das facas, a vingança cega, o ódio, as nossas pequenas vitórias, o dia mais bonito e a nossa sempre frágil Democracia. Nada é garantido.
«Esquecer é morrer
Ao entardecer de viver
Gritar e denunciar
É não alinhar
Não é apenas salvar a memória
Não difamatória
É ter uma história,
Uma história contraditória
É uma vitória
Uma vitória
A nossa vitória
Fugir para a linha da frente
Para a frente de combate».
São palavras de combate e também de intervenção. As palavras que o_João precisava de atirar para o ar de forma a que algo mude quando corre o risco de estagnar. Expõe-se, não se encolhe, vai à luta. Que ninguém lhe faça frente!