Parece óbvio que as democracias ocidentais não podem exigir que a Justiça internacional funcione, invocá-la para apelidar Vladimir Putin de criminoso e, simultaneamente, excluírem Israel e os seus governantes das regras da Carta das Nações Unidas.
Foi o Estatuto de Roma que, em 1998, fundou o Tribunal Penal Internacional (TPI). Depois da sua ratificação por dezenas de Estados, esta instância jurisdicional entrou em vigor em 2002, com mandato para julgar indivíduos que cometam crimes de guerra ou contra a humanidade, genocídios e crimes de agressão.
Procurou-se, assim, criar uma jurisdição permanente e universal para punir os responsáveis por crimes graves dessa natureza, aprofundando o clima de concórdia que se vivia com o fim da Guerra Fria. O genocídio tutsi no Ruanda era, então, uma memória recente que contribuiu para o consenso. Contudo, o TPI revelou desde logo uma enorme fragilidade, decorrente do facto de a China e a Índia nunca terem assinado o estatuto e de a Rússia e os Estados Unidos nunca o terem ratificado.
Em pouco mais de 20 anos, o TPI emitiu cerca de 50 mandados de prisão, a esmagadora maioria visando dirigentes e militares africanos. Provavelmente, todos elas cometeram crimes gravíssimos. Mas, durante os anos de vigência do tribunal, os Estados Unidos invadiram o Iraque e o Afeganistão e criaram um centro de detenção extrajudicial em Guantánamo. Ora, esses atos nunca mereceram a atenção do TPI. E também é verdade que Putin não se mostrou muito preocupado quando, em 2023, a mesma instância jurisdicional internacional decretou um mandado de captura em seu nome e da comissária russa para os direitos das crianças por, alegadamente, terem deportado menores ucranianos para a Rússia.
Sucede ainda que a situação em Gaza, que mereceu a atenção do TPI, é igualmente muito séria. Há dezenas de milhares de mortos civis e é impossível alegar que são vítimas colaterais do conflito, mesmo sabendo que o Hamas utiliza mulheres e crianças como escudos humanos. Há uma desproporcionalidade entre o objetivo militar legítimo e os impactos na população, dramatizado pelo insucesso das forças de Israel em conter ou destruir a capacidade do Hamas – grupo terrorista que, apesar de violentamente atacado, mantém a sua capacidade de fogo, continuando a disparar rockets sobre as cidades israelitas.
O facto de um determinado país ser uma democracia –como é o caso de Israel – não impede que sejam violadas as leis internacionais e que se atue de forma criminosa. E também não cria qualquer imunidade aos respetivos responsáveis políticos e militares por tais atos. Poder-se-á dizer que a questão da desproporcionalidade é subjetiva, mas é indesmentível que Israel não acatou as ordens do Tribunal Internacional de Justiça, no sentido de tomar medidas preventivas para evitar um genocídio em Gaza e, mais recentemente, para suspender as ações militares em Rafah.
Sendo assim, Netanyahu viola o direito internacional e deve estar sob a sua alçada, como Putin e como os dirigentes do Hamas. Não compreendo a indignação dos Estados Unidos e de muitos países europeus, que reclamam por uma ordem justa e universal mas apenas quando isso lhes interessa e não prejudica os seus amigos. Desta forma, americanos e europeus terão cada vez menos autoridade moral e estarão a legitimar os seus inimigos e quem os apoia.
O conflito em Gaza terminará um dia, de uma forma ou de outra. Não sei como nem quem será o vencedor. Mas tenho a certeza de que a razão, a ética e a superioridade moral alcançadas depois da II Guerra Mundial já ficaram pelo caminho.