matuto = diz-se de quem vive no mato e a quem falta traquejo social; caipira; matreiro.
O verbo matutar, significa meditar ou ponderar.
O Matuto está pelos cabelos. Precisa de cortar a guedelha. A temperatura na cidade do interior do Estado de São Paulo, onde o Matuto mora, está que nem um açoite. Felizmente, a gentil esposa do Matuto, Dona Sirlei, aconselhou uma barbearia: “Porque não vais na Vikings Barbearia!? Podes até comer um salgadinho e beber uma Heineken” – foi a proposta. Todavia, o Matuto pensou: “eu só quero uma barbearia, não uma casa de pasto”. A gentil esposa do Matuto, Dona Sirlei, continuou: “Tens lá diversos cremes. Creme para a barba; creme para o rosto; creme para o cabelo; creme para esfoliar (aqui o Matuto sentiu-se serpente e já se via com as escamas fólicas a soltarem-se à desfolhada); creme anti-rugas (vem-nos à memória uma frase batida – Rugas: começam-me a nascer as primeiras rugas. Rugas de chorar, Rugas de sorrir, Rugas de cantar, começo a franzir – canção fatal de António Variações no seu auge como barbeiro no Centro Comercial Imaviz)…” Mas o Matuto só deseja baixar a melena! Nada de barbearias gourmet. E essa “Vikings Barbearia” certamente exige que o barbeado ostente pelos capilares hirsutos e eriçados. Tipo guerreiro com machados a tiracolo e capacetes cornudos. Ora, o Matuto exibe uma singela barba semeada em dias de vento mistral.
Na cidade, no interior do Estado de São Paulo que recebe tão generosamente o Matuto no seu seio¹, há muitas barbearias. Todas são barbearias gourmet. O Matuto fica com os cabelos em pé com tanta variedade. Sim, porque o Matuto está a par das últimas modas. “Up-dated”; “por dentro”; “antenado” – é assim que se diz agora. O Matuto é sapiente das novas tecnologias e vai daí googlou o que precisava… Existe, por exemplo, a Barbearia Vitello (com dois “élles”, se faz favor!). No site o Matuto leu a informação essencial: “Quem passa pela Vitello busca mudança. Seja para testar um novo corte de cabelo, seja para valorizar seu estilo ou mudar o clima do dia com um bom bate papo”. Bom, o Matuto só queria cortar a grenha. Porém fascinado, continuou lendo. Ficou de cabelos ainda mais em pé quando percebeu que a barbearia oferecia uma escolha de “suculentos burgers e cervejas artesanais” que eram “uma desculpa perfeita para esticar o horário da barba”. O Matuto sentiu-se um gentleman Inglês: Spoilt for choice! Mas, o Matuto só queria cortar o cabelo. Não queria uma bar – bearia! Para enfartar a pança escolheria o boteco da esquina. Entretanto, a gentil esposa do Matuto, Dona Sirlei, continuou o relato da fauna de acessórios disponíveis: “tem lá desodorantes, shampoos, pentes, máquinas de barbear, lâminas e giletes, sabonetes, loção pós barba, máscara facial pós barba, relógios, pulseira de roqueiros, colares de prata de couro, óculos de sol, bonés, bóinas e chapéus, alfinetes, ganchos, berloques e bandolettes, tintas para o cabelo, contra a queda de cabelo, contra a caspa… ah, e tem bebidas, coca-cola, guaraná, cerveja… e até chocolates, batata frita, pilhas, capas de celulares…” Aff! Misericórdia!
E aí o Matuto viu as fotos. Cabelos de dimensões e formas diversas. Penteados diversos. Penteados altos ou baixos, com poupa ou sem poupa, carrapitos, rabos de cavalo, chinós, franjinhas, caracóis, tranças, bandós, riscos… E diversos estilos, à escovinha, à lá garçonete (mais c’est chique!), à marialva, à americana, à italiana, à punk, à moicano. Irra! Homens de juba farta com ar de lenhadores russos que emborcam vodka como quem bebe água. Impressionante! De cabelos ainda em pé, o Matuto pondera nestas informações… começando pelos “cabelos”. Quantas expressões Brasileiras que se dedicam a estes filamentos de proteínas (ah, o estimado leitor não sabia que o cabelo é um filamento prenhe de proteína! Pois é!) que se desenvolvem de folículos a partir da derme. São os já referidos “cabelos em pé” – que susto; o “coração cabeludo’ – crueldade em estado puro; ter “cabelo na venta” é ter mau génio; “não levantar cabelo” é não refilar – fica pianinho, não levantes cabelo; há o “procurar cabelo em cabeça de ovo” – aquele cidadão que arma sarilhos onde não os há; e o “estar por um cabelo” – estou por um triz! Daqui a nada está tudo na roça!
Em meio a este dilema capilar, uma presença amiga sugere o Seu Dailton. “O Seu Dailton corta o cabelo à antiga”. O Matuto sentiu-se esperançoso. À antiga, será uma perfeita definição dos seus anseios. No dia seguinte o Matuto sobe a Rua Dom Barreto. Numa esquina da praça, a barbearia. Ausência de publicidade. Só umas portadas generosamente abertas para abraçar as Ipês em flôr. O Seu Dailton, octogenário de cabelo espetadiço, perna longa e braço esguio, indica a cadeira de barbeiro. O Matuto instala-se. A cadeira reinava no espaço amplo de forma altaneira. Pelas portadas abertas gente a passar – “oi, Seu Dailton!” – e olhando de relance para o Matuto encavalitado nos píncaros da tal cadeira. O Matuto sentiu-se uma ave rara em exposição. Começa o delírio das “ka-ta-tchin-kas” das tesouras. O Seu Dailton, todo ele ângulos rectos, dedos em riste, tesouras e pentes a circular o cabelo do Matuto. A cabeça entre as orelhas, tímida! De norte a sul, passando por todos os paralelos e meridianos, o Seu Dailton arrasa o pelo do Matuto. De repente, sobre o som das “ka-ta-tchin-kas ”, ouve-se um retinir de telefone. Triiimmm, triiimmm, triiimmm. O Matuto estica o pescoço a medo, mas não vê telefone nenhum. “Só um minuto” – diz o Sr. Dailton. Papel e lápis na mão o homem galga o espaço para a frente da barbearia. O Matuto vê-o enganchar o pescoço num orelhão (telefone público). “Barbeiro” – anuncia com voz de tenor. Acertados os detalhes com o cliente virtual o Seu Dailton volta e retoma o corte de cabelo do Matuto. “Ka-ta-tchin-kas” – faz a tesoura na mão esquerda, “ka-ta-tchin-kas” – responde a tesoura da mão direita. O Matuto arrisca a pergunta: “O Seu Dailton não tem telefone?” A resposta vem pura: “Não preciso! O orelhão é aqui na frente da barbearia. E celular é perda de tempo. É como as novelas da Globo. Só tem bobeira!” O Matuto ficou a matutar na inteireza da coisa. Fazia sentido. O Barbeiro deu o serviço por terminado com umas toalhas quentes embebidas em álcool. E o Matuto ponderou na ironia: Ele só queria cortar o cabelo. Mas recebeu toda uma lição de vida.
Entretanto, a companhia dos telefones desactivou todos os orelhões da cidade do Estado de São Paulo, onde o Matuto mora. Todos, não! Há um orelhão irredutível. Este orelhão resiste ainda e sempre à invasão do progresso: O orelhão da Rua Dom Barreto, na esquina em frente à barbearia do Seu Dailton.
¹Homenagem singela a A. B. Kotter e seus deliciosos “Bilhetes de Colares”.