Afonso de Melo, em Leipzig
LEIPZIG – O tecto de nuvens começou a baixar e elas ganharam o tom do carvão. A caminho do estádio, ainda tão à moda da República Democrática no exterior, valha-lhe o tempo – e também por dentro, já agora -, ouvi alguém lá no céu a empurrar à bruta móveis pesados. Pensei para comigo, à moda de Leónidas, na Batalha das Termópilas: «Bem, combateremos à chuva». Isto sem saber ou certo se seria para a seleção de Portugal que se estreou neste Europeu algo de positivo ou de negativo. Seja como for, prefiro optar pelo princípio de que o Destino também passa pelo nosso livre-arbítrio. Pelo menos se não optarmos por atrair a desgraça.
Os deuses da atmosfera acalmaram-se, os trovões foram-se com os riscos negros e o relvado abriu-se à minha frente tão, tão verde que até dava vontade de pastar, por assim dizer. Convenhamos que ninguém com os alqueires bem medidos vem para o leste da Alemanha para ruminar pelo que fiquei à espera da surpresa que Roberto Martinez teria para apresentar. Manteve a Velha Guarda, com Pepe atrás e Ronaldo na frente, numa insistência que faz sentido, mas em vez de avançar com três centrais apostou em três laterais, Cancelo, Dalot e Nuno Mendes. Claro que isto é o que apareceu no papel. Restava ver como funcionaria a geringonça quando a bola começasse a rolar. Assim à primeira vista caberia a Nuno Mendes recuar para compor o trio de trás, mas o onze foi tão inédito que dava para fazer qualquer tipo de conjeturas. E deixar o centro do meio-campo entregue a Bruno Fernandes e Vitinha também me causava certa espécie. Com a pulga atrás da orelha, nada como jogar mão da paciência. Não se afobem que já lá vou. Nada de fazer como o outro que dizia: «Se os acontecimentos nos ultrapassam, vamos lá fazer de conta que nós é que organizámos os acontecimentos».
Deixei a bola rolar um bocadinho para vos trazer novidades. Não gosto de números, mas não tenho nada contra quem gosta. Encanita-me um bocado essa coisa dos 4.3.3 e dos 3.5.2 e por aí fora porque me parecem números de telefone e as táticas são tão volúveis que, mal damos por ela, já temos os algarismos virados do avesso. Confirmo, no entanto que Nuno Mendes ficou ao lado esquerdo de Pepe com Cancelo na sua frente e Vitinha e Bruno Fernandes funcionavam como um êmbolo, sendo que o primeiro mantinha-se menos afoito ofensivamente. Por seu lado, os checos pareciam a mesma imagem no espelho da estratégia, apenas com Soucek mais firme como trinco. Portugal assumiu-se, a chuva começou a cair, primeiro com leveza e depois mais à bruta, mas não pareceu incomodar ninguém em particular, provavelmente só a mim imaginando-me a regressar ao hotel que nem um pinto. Se abundava a água o mesmo não acontecia com a imaginação.
Dou por mim a olhar para o relógio. Vinte minutos decorridos e um dilema para resolver: se não se passa nada, vou escrever sobre o quê? Meu dito, meu feito, e quase que Leão aproveitava um passe da direita de Bruno Fernandes. Os checos, metidos nas suas tamanquinhas, pareciam satisfeitos da vida. Um pontapés para a frente e vivó velho! Grandes, maciços como as montanhas de Karkonoszce, lá na sua terra, conhecidas por Montanhas dos Gigantes, mantinham-se num bloco branco muito pouco maleável mas que estremeceu nos alicerces com um primeiro momento de Ronaldo isolado a pôr Stanek à prova e, logo a seguir com um toque de calcanhar do mesmo Ronaldo que ia deixando Bernardo Silva à beira de marcar. O problema do mas é que é sempre um mas… reticências e tudo.
O cobarde soldado Chveik
Chama-se Ivan Hasek o selecionador da Chéquia como a malta agora chama à República Checa. Há muitos Hasek naquilo que foi a antiga Checoslováquia mas nenhum teve o humor refinado de Jaroslav Hasek, autor de um livro maravilhoso chamado em português O Valente Soldado Chveik. Ironia, como está bem de ver. Chveik era um calão, um aldrabilhas, cobarde até ao tutano e, perdoem-me a contradição, fazia tudo para não fazer nada. Ora este Ivan Hasek, rapaz da minha idade, que andou por todo o mundo, da França ao Japão, da Arábia Saudita aos Emirados Árabes Unidos, construiu para o jogo com Portugal uma equipa tão cobarde como o soldado do Jaroslav. Não lhe chamemos de preguiçosa, porque isso decididamente não foi, mas predispôs-se a ficar ali entrincheirada a ver os portugueses trocarem a bola (geralmente sem perigo) e sem se atreverem a atacar a área de Diogo Costa. Claro que, quando se joga assim e se sofre um golo, mesmo que ele caia do céu aos trambolhões, torna-se muito, mas muito complicado mudar de atitude e passar de dominado para dominador. Perante tanta cobardia, convinha também a Roberto Martinez dar um pouco mais de gás aos balanços de esquerda-direita/direita-esquerda de forma a fazer desmoronar a tal Montanha dos Gigantes. Como? Ora, é a ele que pagam, não vim para a Alemanha para dar bitaites e meter-me no seu trabalho. Cá estarei para fazer as contas no fim, embora, como já disse, talvez precise de um ábaco para isso tão fraco sou com numerário.
A primeira decisão do selecionador nacional foi deixar estar. E nós, ali, a marrar contra a parede, às vezes chegando até à pequena-área checa mas sempre com as pernas ou a cabeça de um dos calmeirões a meter-se à frente da baliza. «Ora que grandessíssima estucha!», diria o Alencar do divino Eça se estivesse no meu lugar. E do lado de lá, Pumba!, bola para o pinhal! Passa a hora de jogo. Sessenta e dois minutos, por extenso. Provod aproveita uma das raríssimas idas à frente e o pontapé é fulminante apesar de longínquo. Golo! A cobardia estava a compensar, tal como sempre compensou nas aventuras do malandro do Chveik. Sai Dalot e entra Gonçalo Inácio. Nada muda. Apenas a excitação compreensível de um adversário se aguentou como pôde para agora se ver em festa. Durou pouco. Sete minutos. Tanta gente ao molho em frente ao guarda-redes tinha de dar mau resultado e um ressalto fez Hranác meter a bola na própria baliza. Voltávamos à vaca fria. Ou se não fria, mal aquecida. Apesar de tudo, os checos ganharam um certo atrevimento e passaram a procurar jogar mais no campo todo. Talvez se abrissem agora os espaços que Portugal nunca tivera. A opção coloca-se para ambas as partes: arriscar ou não? A dez minutos do fim sofrer um golo dá ideia de ser irreversível. Os nervos surgem à flor da pele. Discutem-se encontrões, refila-se com o árbitro. O cansaço é visível, aqui e ali. De repente Ronaldo voa para cabecear ao poste e Jota (que entrara para o lugar de Leão) marca na recarga. Gritos de alívio. Suspiros de desespero. O lance é anulado por fora de jogo. Ainda entram Nelson Semedo e Francisco Conceição. Haverá tempo para eles? Há. No primeiro minuto da compensação, Pedro Neto pela esquerda mete na área, Hranác (amigo) falha o corte e Conceição assassina cruelmente o cobarde soldado Chveik que tanto fizera para que o jogo não fosse jogo. A vitória está garantida. Recolho os meus pertences. Também tenho uma carga d’água garantida à minha espera.