BOCHUM– É Outubro na Alemanha? A pergunta faz sentido quando olhamos para um céu cheio de nuvens, muitas delas a prometerem aguaceiros. Os ingleses costumam dizer, com o seu humor característico: «Este ano o Verão calhou a uma quinta-feira». Talvez este ano o Outubro alemão tenha chegado em Junho, e não apenas por causa do tempo mas também por causa dos festivais de bebedores de cervejas que se propagam a cada quiosque, a cada esplanada, a cada cervejaria. Anteciparam a Oktoberfest e deram-na de presente a quem os visita.
Depois de Leipzig e do primeiro jogo de Portugal, instalei-me em Bochum. Faz sentido. Fujo das cidades-sede de Dortmund e Gelsenkirchen onde estarei não apenas para ver o Portugal-Turquia e o Portugal-Geórgia, mas também para o Espanha-Itália e para o França-Polónia. Depois logo se vê.
Bochum, com cerca de 375 mil habitantes, é uma cidadezinha como muitas doVale do Rurh, na Renânia do Norte-Vestefália, completamente destruída durante os bombardeamentos da IIGrande Guerra que arrasaram com a fortíssima indústria do aço que havia nesta região. Fica a menos de 20 km de Gelsenkirchen e ligeiramente mais longe de Dortmund. Vai-se e vem-se numa penada. Vale a pena em tudo, sobretudo no preço dos hotéis que nas cidades-sede dispararam até ao topo dos topos. Olho para o alto, numa tentativa à moda de Anthímio de Azevedo de adivinhar o tempo para amanhã. Não consigo ir além de um geralmente nublado com possibilidade de chuva fraca. Frio não faz. Talvez um pouco mais, à noite, quando os jogos chegam ao fim e é altura de regressar ao quarto que tenho sempre como casa, esteja onde estiver. Confesso que me apetece cantar como Pedro Abrunhosa: «Cheguei ao fundo da estrada/Duas léguas de nada/Não sei que força me mantém/É tão cinzenta a Alemanha/E a saudade tamanha/E o verão nunca mais vem/Quero ir para casa/Embarcar num golpe de asa/Pisar a terra em brasa/Que a noite já aí vem/Quero voltar/Para os braços da minha mãe». Mas estou longe do fim da estrada. Ou não? Oito Campeonatos da Europa já pesam.E queria oVerão esplendoroso que não seja do descontentamento de Shakespeare em Ricardo III: «Now is the winter of our discontent/ Made glorious summer by this sun [or son] of York». Faz-me falta o sol. Aproveito cada minuto dele antes de regressar a casa onde a minha mãe me espera, agora sozinha desde que o meu pai se encantou, como dizia Guimarães Rosa. Mas há ainda, haverá sempre, esta vontade de ir à procura de histórias dentro das histórias, de ir em busca dos homens onde estão os homens, de informar, de esclarecer e de ser útil, tal como dizia o meu querido mestre Alfredo Farinha a propósito do jornalismo. Por isso, de certa forma, estou no meu posto. E continuarei no meu posto.
O céu de Berlim
Já o escrevi dezenas de vezes e volto a escrevê-lo: não há comparação entre um Europeu e um Mundial. Acreditem, que já tenho uma boa conta de uns e de outros. Uma fase final de um Campeonato do Mundo é de um gigantismo inultrapassável. Não há quem substitua as hordas que vêm da América Latina, da África, do Japão. Um Europeu joga-se neste quintal que é pequenino e mais pequenino ficou quando a Rússia resolveu excluir-se dele. Curiosamente, e por estarmos na Alemanha e por se terem apurado várias seleções de pequenos países das redondezas, assistimos agora à festa dos eslovacos, dos romenos, dos sérvios, dos eslovenos, dos polacos, e até dos ucranianos que ainda conseguiram ter a coragem de mostrar um sorriso apesar da sua inicial e copiosa derrota. A Europa que se desmanchou nos últimos trinta anos parece voltar a juntar-se por causa do futebol. «Der Himmel über Berlim» (em português traduziram-no por Nas Asas do Desejo), de Wim Wenders. Um filme sobre a vida e a eternidade, a perda e a descoberta, anjos bondosos dependurados sobre as nuvens depois de uma guerra assassina como todas. Anjos que velam por nós. À partida para a Alemanha, todos tinham o sonho de chegar a Berlim. Até os alemães que já cá estavam. Só dois cumprirão esse onho e só um, sairá desse duelo ao pôr-do-sol com a alegria inimitável da vitória.
Nas asas do desejo
Wim Wenders nasceu, quase simbolicamente, em 1945. A Alemanha não precisou de mil anos, como anunciou o grotesco Hermann Göring, que foi Comandante-em-chefe da Luftwaffe até esse ano, para espiar a sua culpa. Muitos foram os que a espiaram por conta dos cobardes que se suicidaram sem se responsabilizarem pela sua selvajaria. Nas Asas do Desejo também serve. (Claro que há desejo e o desejo, algo que no filme se distingue bem). Que título ficaria melhor para juntar, sob ele, a vontade de cada um dos jogadores, treinadores e adeptos que se aglomeram numa nova Alemanha, limpa de racismos bacocos, para disputar a 17ª edição do Campeonato da Europa. Todos querem erguer alto a maravilha de prata esterlina que é a Taça Henri Delaunay. Talvez para muitos seja um sonho impossível. Até para nós, portugueses, que já o cumprimos da forma mais pragmática, mais insípida e mais difícil. Mas os sonhos, por mais impossíveis que sejam, deixam de o ser no momento em que se cumprem. Vinte e quatro nações anseiam o céu sobre Berlim no dia 14 de Julho. Algumas ficarão perto de o tocar. Outras muito, muito longe. Mas também por isso o futebol é capaz de mexer com a meteorologia e fazer com que esta Alemanha tão cinzenta no dia de hoje se encha de luz e de cores…
Bruno Ganz e Otto Sander, os anjos Damiel e Cassiel são habitantes dos céus de Berlim desde o início dos tempos até á sua destruição, arrasada que foi pelos tanques que vinham do oeste e do leste da Europa para castigar um tal de Adolfo, dito o Führer, homem minúsculo que resolveu desafiar os deuses invencíveis das guerras sem quartel. Só as crianças os veem na sua pureza infantil duradoura até resolverem, por simples inocência, saltar o risco branco que os separa da vida de adultos. Aí o desejo muda de tom. É o desejo carnal de Damiel por uma trapezista de circo chamada Marion. Querer tocá-la custa-lhe caro. É tempo, por isso, de recusar a eternidade pela vontade de tocar, apenas tocar. Muitas imagens desse filme me passam pelos olhos e por esta vontade dos homens de tocar, nem que seja apenas tocar, o presente que, de repente, os afasta do divino e os agarra ao profano. Quem agarrar a prata da Henri Delaunay sentir-se-á divino. Até que se passem quatro anos e a história se repita outra vez. Só os anjos serão testemunhas das suas quedas…