Protecionismo

Os ventos protecionistas e anti-China podem prejudicar o Ocidente muito para além da questão do preço dos VE, baterias ou células solares.

O comércio livre foi sempre difícil de vender politicamente. É, pois, espantoso que o mundo tenha conseguido nos últimos 50 anos reduzir as tarifas de uma média global de 10% em 1973 para os atuais 3%. Esses dias parecem ter chegado ao fim. A face mais visível do novo surto protecionista são os veículos elétricos (VE), mas não se esgota neles. Os EUA aumentaram para 100% a tarifa sobre a importação de VE da China (4 vezes o nível da tarifa preexistente) – um valor absolutamente extravagante, muito para além de qualquer estimativa do que serão eventuais subsídios à produção por parte da China. A União Europeia – mais ciosa de agir em conformidade com as regras da OMC – imporá a partir de julho tarifas que poderão chegar aos 38%, que comparam com os atuais 10%. As medidas são suportadas por dois tipos de argumentos. Um é protecionista puro e duro: é preciso salvaguardar empregos e dar tempo à indústria automóvel para se ajustar ao contexto competitivo e aproximar-se da fronteira tecnológica. Já o ouvimos muitas vezes, designadamente com as quotas impostas nos 1980’s pelos EUA à importação de carros japoneses, e que redundou numa pura transferência de rendimento dos consumidores para os acionistas das Big 3 e para a United Auto Workers. O outro, prende-se com os riscos (que julgo reais e relevantes) para segurança nacional da concentração das cadeias de abastecimento globais na China ou na, delirante, possibilidade de a China monitorizar os cidadãos ocidentais. 

O combate às alterações climáticas é uma prioridade dos governos ocidentais; para acelerar a transição verde tanto os EUA como a UE necessitam de disponibilizar aos seus cidadãos ao menor custo possível tanta tecnologia limpa (EV, baterias, painéis solares, etc.) quanto possível. Ora, como as tarifas não são pagas pelos produtores chineses, mas pelos consumidores americanos e europeus sob a forma de carros mais caros e menos evoluídos, os governos estão, no fundo, a tributar a transição climática. Quando (se) o governo da RPC subsidia a sua indústria automóvel está, de facto a subsidiar os consumidores europeus e americanos e, ironicamente, a ajudar o cumprimento das metas de redução das emissões. Não duvido que o governo da RPC subsidie a produção de VE (em que percentagem do custo é uma questão difícil, mas essencial). Contudo, essa não pode ser verdadeira origem da vantagem competitiva chinesa como se pode inferir do facto de o mais recente BYD Seagul vender na China a cerca de 10 mil dólares, (e de estes não serem chaços baratos, mas, sim, carros state-of-the-art). 

Os ventos protecionistas e anti-China podem prejudicar o Ocidente muito para além da questão do preço dos VE, baterias ou células solares. A China vem-se afirmando como uma verdadeira potência científica. Dados recentes mostram que a China já ultrapassou os EUA no peso no número global de artigos científicos de ‘alto-impacto’ e que universidades como Tsinghua ou Zhejiang rivalizam com o célebre MIT na produção de investigação de ponta. Como os VE, as baterias (ou a própria Huawei) demonstram, esta investigação já sai dos muros das universidades e acaba vertida em inovações comerciais. Podemos desejar um regime chinês diferente – mais aberto, transparente e democrático – e concordar que a sua natureza exige cautelas de segurança. Mas isto não me parece suficiente para excluir os cidadãos ocidentais dos benefícios que produtos de fronteira e a ciência chinesa lhe podem oferecer. Seria deitar fora o bebé com a água do banho.