A tarde prolongou-se em sol, dependurado lá no alto como um balão amarelo que ferve. Finalmente há Verão na Alemanha e posso caminhar para os estádios sem o peso do cinzento que me caía sobre os ombros. Era um jogo de alegria, este Portugal-Geórgia, apenas o segundo jogo entre as duas seleções depois de um particular em Viseu, em 2008, finalizado com a vitória portuguesa por 2-0 (pois…). Alegria nossa, que já não precisávamos dele para sermos primeiros do grupo; alegria georgiana porque no seu primeiro Europeu conseguiu chegar à última jornada ainda com uma ligeira esperança de passar à fase seguinte.
Todos esperávamos por mudanças, Roberto Martinez disse que ia fazê-las, restava saber quais. Por isso não houve surpresas ao vermos em campo uma equipa tão diferente daquelas que entraram no início dos dois jogos anteriores. Restava saber que trariam de novo estes jogadores ainda perros nesta competição. As estrelas que esquecemos de contar como cantaria o grande João Gilberto. Fico com o som da onda no ouvido: «Vou-te contar/Os olhos já não podem ver/Coisas que só o coração pode entender». Depois debruço-me para ver o que começa a desenrolar-se no relvado à minha frente, lá em baixo deste estádio que tem bancadas quase a pique. Regresso da defesa a três, com Danilo rodeado por Gonçalo Inácio e António Silva, Palhinha no seu lugar de trinco e com Dalot e Pedro Neto nas laterais e João Neves, João Félix e Francisco Conceição a apoiar o ponta-de-lança Ronaldo, agora parecendo já convencido que é ali o seu lugar, mais fixo do que nunca (acrescentando-se que se não ficou de fora ontem das duas uma: ou o selecionador não acredita nos suplentes ou Cristiano, consciente que será o seu último Campeonato da Europa quer roê-lo até ao tutano). Uma equipa jovem posta à prova, o que só pode ser positivo pois não se alimentam meninos com bombons. O que vi passo agora a contar.
Kvisha Kvaratkshelia pode ser um nome de provocar cãibras na língua mas nem tivemos tempo de afinar a pronúncia. Foi por ali fora a semear pirilampos pelo caminho, isolou-se e chutou para o golo. Se tínhamos passado o minuto e meio anterior a trocar a bola à maneira de quem sentir-se confortável com ela, o passe errado de António Silva foi mesmo muito desconfortável. Não é de estranhar depois da época infeliz que teve mas, caramba!, ainda havia uma imensidão de tempo para jogar e sempre fomos bons com imensidões como a dos oceanos. Tbilissi é uma das mais bonitas pequenas capitais da Europa e o seu milhão e poucos de habitantes pareciam estar todos em Gelsenkirchen, instalados atrás da baliza de Diogo Costa. Não sei se a gana jogos ou não, mas para já estava a ganhar. Sem ideias, atrapalhadas com o golpe, as nossas estrelinhas não brilhavam como pirilampos não. Limitavam-se a estar apagadas. Estrela maior, teve de ser Ronaldo a incomodar Mamardashvili. Meia-hora tão mal passada como um bife em sangue.
Entretanto, em Hamburgo
O jogo concomitante, disputado em Hamburgo, entre a Chéquia e a Turquia também nos interessava. Na classificação dos melhores terceiros, a Hungria estava pendurada pelo cantinho da vírgula para não se tornar um ponto final neste Europeu. Se os checos ganhassem atiravam com a Turquia para um terceiro posto que seria sido discutido pela regra dos golos marcados e sofridos. Saindo os húngaros desse grupo de quatro melhores terceiros (eliminados, portanto) avançava a Eslovénia para os nossos oitavos-de-final, em Frankfurt.
Claro que isto não nos eximia da obrigação de fazermos qualquer coisa em Gelsenkirshen. Não fazermos nada, como estávamos a não fazer, é que não era assim muito admissível, afinal isto é a fase final de um Europeu, ou não é? Cristiano Ronaldo irritava-se com a arbitragem sem razão e viu um amarelo apropriado. O problema era que a irritação dele não se pegava aos companheiros, o vírus era fraco. E continuávamos a pisar uvas de forma inconsequente e alimentar o otimismo dos georgianos que, pelo seu lado, se defendiam, pois claro!, mas também não se acantonavam nas ameias do seu castelo. Kvisha Kvaratkshelia ia sendo tão chato quanto o nome dá a entender. Se vivesse em Portugal nem na tropa o tratavam pelo apelido. Cá por mim, se não vêm inconveniente nisso, passo a tratá-lo por Kvisha que sempre poupo nos carateres.
O intervalo chega e a frustração de Ronaldo começa a entrar pelos caminhos da impaciência, esbracejando de nervos.
Em Hamburgo, como diria o meu querido Manuel Alegre, tudo na mesma, isto é, a vida corre…
Mas a Geórgia entrava para a luta dos três melhores e empurrava-nos para os braços da Eslovénia e, com mais um golo, podia chegar ao segundo lugar se checos e turcos se mantivessem a zero.
Vamos lá ver as coisas como elas são: se a filosofia que Roberto Martinez aplicou para este jogo, segundo a qual arriscava numa equipa secundária para lhe dar arcaboiço, sendo isso mais importante do que o resultado, então não valia a pena começar a trocar suplentes por titulares. Ao fim ao cabo as estrelas secundárias daquela que muitos exaltam como a melhor geração do futebol português (haveremos de falar sobre isso) não conseguiam resolver o berbicacho em que se tinham metido, que sentido fazia que entrassem outros para o seu lugar. Era de ver até ao fim a massa de que é feita esta rapaziada, pelo menos é esse o raciocínio que aqui exponho. Até iria mais longe: perante tanta raiva acumulada contra os árbitros todos (quarto árbitro incluído) aconselhava-se a saída de Ronaldo, não fosse ele ser vítima do seu próprio destempero.
Aceite-se que o selecionador não se contradisse. Limitou-se a trocar Palhinha por Ruben Neves. Ou seja, trocou mais um titular por um suplente. Ou, de forma mais positiva, trocou o passe curto pela possibilidade do passe mais longo. O músculo não fazia parte deste jogo, convenhamos.
O céu de Gelsenkirshen foi ficando tão baço como o Portugal em calções que estava em campo.
Locoshivili é um nome mais fácil. Sobre ele que António Silva (que desastre, a exibição do nosso Hranac!) cometeu penalti que Mikautadze converteu logo aos 12 minutos da segunda parte. Se até aí o jogo praticado pelos portugueses tinha sido de apavorar uma matilha de samoiedos, era otimista pensar que pior do que o que estivéramos a assistir seria impossível. Já do lado georgiano, melhor também parecia impossível.
Martinez troca Ronaldo por Gonçalo Ramos e António Silva por Nelson Semedo. Fez bem. O capitão estava impossível de aturar por uma arbitragem com o seu quê de rígida. Desfez a defesa a três e apostou em quatro em linha, embora Semedo e Neto já tivessem ordens para procurar espaços atrás no nosso avançado-centro. Mas, com as nossas segundas estelas tão apagadas, que fazer se não enchermo-nos de paciência? Os georgianos, que não são nenhuns saloios, entenda-se, deixavam-se estar. O invisível Pedro Neto saiu para entrar Jota. Neves foi substituído por Matheu Nunes. Kvisha sozinho infernizava a vida de três ou quatro dos nossos defesas até que o francês Sagnol (há sempre um francês que nos lixa a cabeça), selecionador adversário, tem pena de nós e resolve poupá-lo, a ele e para aí uns dez milhões de portugueses. Os ecrã do estádio avisam que os «trams» estarão e funcionamento por mais uma hora. »Ruhig alten». Não preciso de ter pressa e os georgianos também não. Vendo bem, já ninguém tem pressa. Para quê? Os oitavos-de-final, contra a Eslovénia, são daqui a cinco dias. Roberto Martinez saberá distinguir entre estelas e pirilampos.
«E o resto é mar…»