O Matuto e o Chorinho

O Matuto é sapiente de que “café com leite” é uma referência à economia dos estados de São Paulo e Minas Gerais, grandes produtores respectivamente de café e de leite.


matuto
= diz-se de quem vive no mato e a quem falta traquejo social; caipira; matreiro.
O verbo matutar, significa meditar ou ponderar.

O Matuto gosta de um bom café. Pela manhã para sacudir a névoa dos olhos. Depois pode vir café com leite, galão, pingado, cortado, garoto, directo, de máquina, sem princípio, em chávena escaldada (xícara aqui no Brasil), chávena fria… Enfim! O Matuto gosta dum bom café com leite. Vai daí, eis que o Matuto entra lampeiro numa padaria/pastelaria, na cidade do interior do Estado de São Paulo, onde habita. Resoluto, o Matuto pede: “um café com leite, por favor”. Espantado o garçom responde: “qué que falou moço!” (No brasil todos os homens maduros são chamados de “moço”). Ultrapassada a barreira linguística, o Matuto pede uma “meia” – chávena/xícara com 50% de café e 50% de leite. Nada de lãnhices cobrindo o pezinho. A clareza na comunicação é essencial. E os detalhes também – já dizia o Roberto Carlos. Mas, adiante que se faz tarde! O Matuto sorve a bebida em atitude de libação. Delícia! Aí, surge o repto: “ei, moço! Tem chorinho!” Lestamente o garçom derrama o restante da “meia” num copo à lá galão Lisboeta. É o chorinho! O Matuto apreciou a generosidade do gesto: “esplêndido!”

Após a devida veneração à “meia” e ao chorinho, o Matutou quedou-se na origem da coisa. O chorinho refere-se ao pedido de uma dose extra ao vendedor de chá mate ou caipirinha, nas praias Brasileiras. Então, é normal estando na praia, ao pedir a sua bebida que peça um chorinho porque a coisa rola. Nos cafés e padarias da cidade do interior do Estado de São Paulo, onde o Matuto habita, a oferta do chorinho já é uma tradição instalada. O chorinho é o parente ausente que já esperamos. Entretanto, o Matuto está em condições de esclarecer que nesta região do Brasil a expressão “café com leite” tem outra conotação. Pois é! O Matuto é sapiente de que “café com leite” é uma referência à economia dos estados de São Paulo e Minas Gerais, grandes produtores respectivamente de café e de leite. Sempre foram estados muito populosos e fortes politicamente.  A política do “café com leite” regulou a lógica do poder durante a Primeira República (1889-1930) no Brasil. Neste acordo de oligarcas locais os políticos paulistas e mineiros alternavam-se na cadeira de Presidente da República, favorecendo as economias destes Estados. Portanto, não é de estranhar o pasmo do garçom (certamente um cidadão versado nestas andanças da História) ao ouvir o Matuto pedir um “café com leite”. Há expressões assim, pondera o Matuto. Abrimo-las como se estivéssemos refastelados num tapete voador que nos transporta pelo tempo, no espaço, e fazem vibrar o nosso ser com os ecos grávidos de História. E fica diante de nós esse fervilhar de gente, e esse trabalhar de dias e noites passadas. Surgem-nos as cores, as formas, as medidas, os volumes das paisagens já visitadas. Lirismo. Deambulação. Metamorfose. Vagabundagem. Como o perfume, o paladar e o encorpar dum vinho velho. Ou de um bom café – justifica o Matuto.