Os avançados-centro morrem ao entardecer

Sanchez pergunta: «Es soltero o casado?” Ao que Kluivert responde candidamente: «No, sono centravanti”.

FRANKFURT – Nessa tarde éramos três. Caminhávamos devagar com o sol por cima, redondo e grosso, um cão escanzelado seguia-nos teimoso na expectativa da esmola das migalhas, as gralhas dependuravam-se como vírgulas desacertadas nos fios do telefone, havia uma atmosfera pacífica de tempos que não têm fim e uma sensação melancólica de nada haver para fazer senão caminhar lentamente com o sol por cima como uma testemunha inalcançável da nossa peregrinação sem destinos.

Vínhamos de Mostar, perdida no meio dos vinhedos, e ainda mais do sul, de Dubrovnik onde o Adriático é tão azul que os olhos choram sem querer, arrastávamos os pés por um caminho de terra batida que fervia e, ao longe, já se via Sarajevo, tal e qual a conheci, ainda não magoada e destruída certamente, linda com as suas cúpulas e minaretes e palácios, é daí que vem o seu nome, «saraj» como designam os turcos – o palácio. Falávamos de futebol, durante muitas horas falámos de futebol ao ritmo dos passos. Deve ser por isso que o futebol apaixona: a gente não se limita a vê-lo, não se contenta com as bolas que entram ou não entram na baliza de guarda-redes infelizes, a gente precisa de falar sobre ele, esgotar os argumentos como se se cansasse dentro de campo atrás de uma bola teimosa, insubmissa, irrequieta. Já o disse e repito: éramos três. O terceiro de nós resolvera-se a artes de ponta-de-lança no Zeljeznicar, «o clube que tem camisolas da cor-do-céu-depois-da-chuva», como nos dizia com o orgulho profundo dos proprietários de coisas únicas. E eu confesso: nunca vi entrar em campo nenhuma equipa com camisolas da cor-do-céu-depois-da-chuva. Encontrámo-lo numa estação dos caminhos-de-ferro mastigando abrunhos arroxeados que tirava de um pacote de papel pardo, amachucado. Colou-se-nos como uma sombra, silenciosa e muda, sem regatear palavras ou gestos, ficámos amigos desde então. Tinha um nome curto e afiado: Zurc. Ensinou-nos os carreiros mais recônditos da cidade, as ruas, as praças, as vielas arabizadas. E também então fui aprendendo que é bom escrever sobre as cidades.

Mas, anos e anos se passaram entretanto. De muito disto já eu me esquecera só que, de vez em quando, deito a mão às prateleiras da memória em busca de qualquer coisa que me faça repicar os sinos na torre solitária da igreja da saudade. E lembro-me – lembramo-nos todos! –  que veio a guerra e a morte e um silêncio que deixava as perguntas sem respostas e as mensagens sem retorno e uma dúvida insinuando-se lentamente, decidida a tomar por completo a lugar de uma certeza.

O meu bom amigo Darwin Pastorin, italiano de mãe brasileira, jornalista, escritor, alma-grande, dizia, num dos seus livros, Le Partite No Finiscono Mai: «Guarda-redes é o posto mais poético, literário e romântico do futebol. Mas também com o avançado-centro não se brinca, seja ele anónimo ou ameaçador». Fica a ideia e, de mim, a discordância. E se a um se associa a loucura temerária, a agilidade felina e a verdade do homem que está ali, só contra todos, contra os adversários, contra os erros, as falhas e os medos profundos de si mesmo, eternamente à espera que a trave lhe caia em cima da cabeça, ao outro cola-se a imagem de uma inevitabilidade congénita, biológica até. Avançado-centro não é arte nem ofício que se aprenda. Nasce-se avançado-centro. No campo, no trabalho, na vida e até na morte. Um dia, durante o Campeonato do Mundo de França, Hugo Sanchez, o mexicano que jogou no Atlético e no Real Madrid, o ginasta dos pontapés-de-circo, foi entrevistar o holandês Kluivert, então no Milan, para um canal de televisão espanhol. O primeiro não falava italiano, o segundo não entendia castelhano. Sanchez pergunta: «Es soltero o casado?” Ao que Kluivert responde candidamente: «No, sono centravanti”.

É-se avançado-centro! Porque essa é a verdade indesmentível dos jogadores que, em campo, querem a bola ao mesmo tempo que desprezam a sua companhia; que a exigem nos pés, no peito ou na cabeça mas que a tratam com violência no segundo imediato; os que vivem na pressa de que o jogo se conclua porque o golo é sempre a conclusão do jogo ainda que ele recomece, uma e outra, e outra vez. Era isso que eu queria dizer: como na vida.

«Se me perguntarem porque é que o avançado-centro deve morrer ao entardecer, direi que precisa de fazê-lo antes que chegue a noite e eu fique só, na casa dos mortos da qual apenas eu me lembro», escreveu Manuel Vázquez Montalbán, escritor catalão, apaixonado pelo Barcelona. O entardecer é uma hora mágica, digna do fascínio secular do 9. É o momento tardio no qual se diluem os biorritmos do entusiasmo e os fins se anunciam num espaço infinito de melancolias. É o tempo em que vamos, devagarinho, deixando de ser o que fomos para recomeçarmos, ainda mais devagarinho, a ser o que ainda não somos. E a sua mensagem era, assim, difusa e perturbante: «Os avançados-centro têm a cabeça de pedra e o corpo de coral rosa e por isso de desfazem quando se atiram contra os rochedos. À sua sombra crescem os inválidos que jamais posarão para um retrato épico e sobre o seu cadáver renascem as estruturas dos vencidos da biologia».

Conheci em Sarajevo um avançado-centro corajoso. Nesses dias de calores impossíveis não existia ainda a inquietação angustiada da guerra, mas ele falava-nos com raiva das injustiças exibindo o seu orgulho muçulmano e sem quebras. Tinha um nome em monossilábico que parecia prenúncio de um vida curta. Era ao mesmo tempo um pouco triste e solitário como devem ser todos os avançados-centro. Mais tarde, ainda conversámos à distância dos golos que nunca o vi marcar. Um dia qualquer o seu telefone ficou mudo. Talvez uma campainha se esforçasse num driiiing-driiiing insistente pelos corredores de uma casa vazia onde ninguém ficara para o gesto simples e corriqueiro de levantar o auscultador. Pode muito bem ser que tenha morrido ou desaparecido nos horizontes como uma música ao longe. Ao entardecer, claro!, como manda o irrevogável destino dos avançados-centro.