Morreu esta segunda-feira, aos 75 anos, uma voz que sempre soube humedecer-se na tradição, o homem que trouxe para a música o supremo ressoar das águas de todos os nossos mares. Um dos nomes decisivos da canção de intervenção, e, sobretudo, alguém que nos ensinou a lidar com a pesada herança do nosso passado sem temor nem reverência.
Ele era de ler e de cantar para si antes de tudo, afinando o sangue por esse mínimo alvoroço das causas que começam no esforço íntimo daquele que procura amadurecer-se a si mesmo, e assim vai conhecendo os usos resistentes de todos os que, tendo menos, fazem da canção um domínio sobre outro tempo, reconhecendo os lugares para lá do que é eterno, nessa capacidade de ir ao fundo, onde o mar se esconde. “Entra no húmido Reino e vai-se à corte/ Daquele a quem o mar caiu em sorte”, escreveu Camões, que ele leu tanto, para chegar onde “As águas campo deixam às cidades/ Que habitam estas húmidas deidades.” A voz de Fausto Bordalo Dias tinha essa humidade viva, esse rigor donde as ondas saem mais calmas ou rudes, sabendo responder às iras do vento como só o mar, que as absorve e delas faz um sentido, descobrindo “o fundo nunca descoberto/ As areias ali de prata fina”. A tradição fez-lhe o ouvido, fez-lhe aquela apreciação pela leveza dolorosa que os homens aprenderam à sua custa, apropriando os seus gestos mais duros, mais pesados com uma graça e elegância que é própria da experiência, da proximidade com a vida e com o mundo.
Como assinala o Avante, “o Fausto Bordalo Dias cantou-nos (e contou-nos) sempre como mais nos fazia falta. Do namoro à reivindicação, a explicar como tinha que se fazer ou a contar a História do que foi; sempre do lado do povo, na certeza de que ‘outros tempos hão-de vir’./ Cantou-nos sempre de forma exemplar, trabalhando a própria criação popular em arranjos como o da Carvalhesa, que graças em boa medida ao seu talento e do pequeno grupo de músicos e técnicos portugueses que com ele trabalharam, continua a ser tão portuguesa como sempre o foi, e a despertar de forma viva e entusiástica a alegria e a confiança no futuro que a sua audição pública continua sempre a comprovar.”
Ele que não se via como poeta, e que nem gostava de viajar, tem um grande trabalho a estabelecer ligações, pontes, e é impossível não reconhecer o génio na forma como vertia elementos entre o som e o ritmo, a palavra, a música, compositor nesse sentido mais exigente, dizendo os movimentos mais antigos e vastos, tendo retido a lição do mundo, desses seres a quem tudo fala, de tal modo que o vento lhes leva a voz que a ele deitaram. “Quem conhece a obra de Fausto Bordalo Dias, sabe ao que vem. São milhares de horas de dedicação e estudo intenso, de criação febril, de pausas sem tréguas ao pensamento”, notava Nuno Pacheco, numa reportagem feita em 2010, quando assomava o terceiro tomo da sua trilogia das Descobertas (“Por este Rio Acima”, “Crónicas da Terra Ardente” e “Em Busca das Montanhas Azuis”), e se ensaiava a apresentação ao público, no CCB. Era seu entendimento que a diáspora portuguesa persistia ainda, contando tudo, sem se dar a devaneios exaltantes, mas recriando eximiamente o fio da história, de modo a que este possa ser um alimento da memória. Não se tratava, por isso, de contribuir para o engrandecimento de uma visão mítica, mas para estabelecer uma ligação esclarecedora com o nosso presente, como ele tornou claro numa entrevista dada ao Expresso, em novembro de 2011: “Encostado aos cenários da História, eu falo do presente. Como hoje continuam fenómenos da escravatura, da guerra, das lutas tribais, da exploração, da incompreensão do outro ou da cooperação entre os povos. O meu trabalho não se quer passadista”.
Na madrugada desta segunda-feira a sua voz integra-se definitivamente a esse apelo das coisas passadas, esse rumor que persiste junto à tradição. Tinha 75 anos, e acabou vítima de doença prolongada. Ele mesmo foi uma embarcação, indo por esses cursos de água onde a canção se mostra capaz das sínteses mais cativantes e poderosas, numa viagem por mar aos elementos musicais que exprimem o nosso modo de resistir ou de partir pelo mundo. Agora, e depois de um percurso de cinco décadas, não é difícil ouvir dele as notas e o tom que embalam esta passagem derradeira. Ele que tinha o absurdo e comovente dom de quem sabe urdir as passagens, pareceu espantar-se com esta: “O que foi que me aconteceu/ O que foi que me aconteceu/ O meu corpo arrancou-se violento/ Num esforço arrastado cuspiu-se num grito do fundo mais negro de um pesadelo/ Respira agora ofegante, respira agora intranquilo/ Banhado em suor, arfando em suor, curvado em suor (…) Recortado na noite/ Estaria sozinho naquele ermo infinito/ Eu estava sozinho e o que recordo ainda é a bafagem quente das feras que me rondavam num cerimonial felino e pausado de morte”…
Tínhamo-nos habituado à sua ausência, e não lançava novos álbuns desde 2011, ano em que nos deu o seu último trabalho discográfico, “Em busca de montanhas azuis”. Sendo raras as apresentações ao vivo de lá para cá. Mas a sua lição incita-nos no sentido de saber escutar e estar à altura da tradição, estudando e confrontando-a, de modo a enriquecê-la. Ele mostrou as possibilidades que se abrem de um percurso em que um artista sabe mergulhar num território profundo, sendo voluptuosamente sacudido por tantas sugestões e vagas, por essa convivência árdua e apaixonante. É um modo de procurar esse convívio difícil entre as eras, renovar certos ímpetos, construindo um imaginário poético que sabe ligar-se e reflectir o de antes, sem deixar de descobrir o seu próprio rumo. Ele poderia misturar a sua voz à de Lautréamont na sua ode ao velho oceano, como se a própria tradição musical fosse a resposta dos homens a essa sublime superfície, com as suas vagas incomparáveis, com o sentido calmo do seu poderio eterno. “Assim que uma diminui, logo outra vai ao seu encontro aumentando de volume, acompanhadas do ruído melancólico da espuma que se funde, para nos avisar de que tudo é espuma. (Assim os seres humanos, vagas vivas, morrem um após outro, monotonamente, mas sem deixarem atrás de si o espumoso ruído).”
Nascido em 1948, a bordo do navio Pátria, numa viagem entre Portugal e Angola, país onde viria a formar a sua primeira banda, Fausto estreou-se em nome próprio com a edição de um álbum homónimo em 1970, embora o próprio preferisse entender “P’ro Que Der e Vier”, edição da Orfeu datada de 1974, como o arranque oficial da sua discografia. Lançou trabalhos marcantes para o moderno cancioneiro português como “Madrugada dos Trapeiros”, de 1977, “Histórias de Viageiros”, em 1979, e, sobretudo, “Por Este Rio Acima”, trabalho de 1984 amplamente considerado como um dos melhores trabalhos de sempre da música popular portuguesa. Como assinalou a Casa da Música, aquela que se constituiu como a trilogia fundamental da música portuguesa, iniciada com o LP duplo Por Este Rio Acima e inspirada nos relatos da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, “surpreendeu com impressionantes rasgos de imaginação e lirismo, criando uma fusão invulgarmente consistente da tradição musical oral portuguesa com elementos contemporâneos, muitos deles remetendo para outros espaços e culturas, como as terras por onde Portugal passou, e sem pruridos em colocar no mesmo quadro as conquistas aventureiras e as marcas mais sangrentas da expansão portuguesa.”
Entre as homenagens que se foram multiplicando após ser conhecida a notícia da sua morte, merece destaque a de Amélia Muge, que partilhou palcos e estúdios com Fausto, e que reconheceu a sua dúvida em termos que mais tarde ou mais cedo deveriam abranger todos nós: “Quando o escutamos, tem essa dimensão de nos ajudar na descoberta de quem somos, do que foi a música ontem, do que é hoje e do que, eventualmente, continuará a ser”.
A sua intuição é insuperável, aquele sentido de aproveitamento, e também um rasgo para a delicadeza, a sensualidade que é rara nos músicos da sua geração, aquela força de quem sabe opor-se e intervir sem ficar mastigado, sem abrir margem da sua capacidade de se sumir, reverter a si. Tudo isso lhe parece vir da intimidade que estabelece com o antes e o despois, sem cair no erro de ceder a qualquer forma de adulação ou a uma deferência excessiva, não lhe é só reconhecida a virtude na forma como vai raspando detalhes tanto entre a cultura erudita como na popular, entre a poesia de Camões, ou as palavras de algum romance desses que encantam quem só com dificuldade vai juntando as letras, e apenas por essa lentidão majestosa com que se entre nos territórios provocadores do amor. Ele roubava e revia, mudando, adaptando essas palavras sumarentas, cheias de sol ou treva, passagem que permanecem em nós muito tempo depois, como pequenos nós de sombra ou breves manchas luminosas. E o mesmo entendimento lhe permitia ser tão livre na música, na subtileza que faz a força das suas orquestrações, indo buscar instrumentos tradicionais e sabendo conjuga-los com os de orquestra. Ana Luana Caiano, uma das artistas da geração de músicos mais recentes, em declarações ao jornal Público destaca isto mesmo e o carácter “bastante experimental” da estrutura das suas canções e o seu talento ímpar enquanto melodista. E se “o futuro do homem é o homem”, é preciso conhecê-lo em todo o seu arco, para não ficarmos sempre desgostados com esta imagem desfigurada e inábil que é próprio de um tempo que perdeu a sua ligação com o passado. Como assinalou a Casa da Música na homenagem que lhe rendeu, Fausto sempre preferiu a música no irrepetível instante do nascimento, de absoluta intimidade. “Depois”, como explicou, “é qualquer coisa que nos abandona, que se oferece aos outros para que cumpra aquele inevitável destino de ser bem e mal-amada”.