A cauda que abana o cão» é um dito usado para descrever situações em que o importante é controlado pelo acessório. Não pude deixar de pensar nele a propósito da comissão parlamentar de inquérito ao ‘caso da gémeas’, que tantas horas da programação por cabo e de tempo dos deputados tem consumido. Um frenético abanar de cauda, cujas motivações políticas são claras e se inserem na agenda do partido Chega de colocar a corrupção no centro do debate e, assim, alimentar a nuvem de suspeita popularucha sobre a ‘elite política’.
Vejamos a cauda, ou seja, ‘o caso da gémeas’. Nada do que até agora pude aprender aponta para a corrupção de um agente público (no sentido de abuso da sua posição para obter um ganho privado), desperdício de dinheiros públicos ou prejuízo para terceiros. Brande-se o preço do medicamento Zolgensma – ‘o mais caro do mundo’ -, como se fosse por ele que existem filas de espera nas cirurgias ou urgências encerradas. Pura demagogia! O relatório do IGAS é revelador: as crianças tinham direito a ser tratadas no SNS, mas terá havido uma intervenção direta e indevida da Secretaria de Estado da Saúde. Em bom português, houve uma cunha. E o que esteve na origem dessa cunha? Tão somente aquilo que Ortega y Gasset referiu como «o homem e as suas circunstâncias»: as circunstâncias de uma mãe chamada Daniela e as circunstâncias de um filho chamado Nuno, conjugadas no contexto de uma sociedade pequena com uma forte cultura de compadrio. É sério, mas não excessivamente.
Enquanto nos distraímos, não refletimos seriamente sobre a corrupção em Portugal.
Estranhamente, num país que tem um ex-primeiro-ministro acusado e um ministro condenado por corrupção, sabe-se pouco sobre ela. É um problema sistémico ou isolado? Quais as suas formas mais comuns: suborno, tráfico de influências, facilitação de acesso, peculato, clientelismo? Envolve sobretudo o pequeno suborno (como o pagamento a funcionários de nível relativamente baixo para ‘olear a engrenagem’) ou, pelo contrário, predomina a grande corrupção envolvendo altos funcionários e políticos? É, ainda, estranho que quando se abre uma iniciativa legislativa anticorrupção como o Governo fez, não se identifiquem a natureza do problema a combater, as suas causas e consequências e quais as metas a alcançar. Falar da corrupção em geral, colocando tudo no mesmo saco da ‘bandalheira nacional’, pode saciar a sede populista, mas não contribui para encontrar soluções efetivas e equilibradas.
As raízes da corrupção são variadas, mas um princípio chave é que a corrupção tende a medrar sempre que existam rendas económicas a ser apropriadas e onde os decisores públicos têm poder para as repartir. Essas rendas podem resultar da oferta limitadas de certos recursos escassos (tipicamente naturais) ou da intervenção governamental, designadamente através de regulamentação, da atribuição de subsídios ou isenções fiscais, da distribuição de fundos comunitários ou da seleção de ‘campeões’ de política industrial. As grandes armas contra ela são a transparência, a desregulamentação, a liberdade de imprensa e um sistema judicial eficiente.
Não nos devemos, contudo, deixar cegar pelo combate à corrupção, pois ela nunca poderá ser totalmente eliminada: é simplesmente demasiado dispendioso reduzi-la a zero e esse esforço facilmente conflituará com as liberdades individuais e os direitos humanos fundamentais. O objetivo das políticas públicas não deve ser tentar alcançar a integridade absoluta, mas antes, mais modestamente, aumentar a honestidade e a transparência no funcionamento do Governo e dos organismos públicos.
Professor universitário