Nasceu por acaso em pleno Atlântico no início do Inverno de 1948 e passou a juventude em viagens com a mãe entre África e a metrópole. Hoje Fausto Bordalo Dias está onde gosta. Depois de anos de investigação sobre a grande aventura das Descobertas, que deu álbuns como Por Este Rio Acima, baseado na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, e Crónicas da Terra Ardente, o cantor encerra agora um ciclo com Em Busca das Montanhas Azuis, o seu novo disco.
O pai, como muitos portugueses, estabeleceu-se no planalto central de Angola, em Nova Lisboa, hoje Huambo. Fausto Bordalo Dias, o segundo filho do casal, nasce a bordo do Pátria, em pleno Atlântico, mas na documentação fica o registo do berço da família: Vila Franca das Naves, concelho de Trancoso. Este percurso permanente entre Angola e o império, com o mar de permeio, fica gravado em todas as fibras do seu corpo: «O cheiro a mar, para mim, que vivia no sertão angolano, era uma coisa estranha. Sentia-o quilómetros antes de chegar a Luanda, onde embarcávamos para Portugal. Quando comecei, em 1979, a compor Por Esse Rio Acima, o facto de os meus pais terem também partido e de eu os ter acompanhado de um lado para o outro condicionou o meu trabalho. Começou de forma inconsciente, e é nesse sentido que digo que também fiz parte da diáspora».
Em casa dos pais conviviam serenamente duas visões diferentes sobre o regime salazarista. A mãe, Alice, está do lado do ditador; o pai, Fausto, faz propaganda pela oposição. Ela, católica, apostólica, romana; ele, ateu. Fausto vai buscar uma coisa a um, outra a outro: «Ela tentou transmitir-me esse mundo de valores, mas não tenho esse dom, não sou crente». Com a mãe aprendeu as primeiras letras, as primeiras contas e dela herdou a voz: «Espantosamente gostava de Édith Piaf e cantava maravilhosamente».
África, com os seus grandes espaços, as suas matas e os animais que nela se abrigam, era o reino ideal para o imaginário infantil. Como os primeiros descobridores portugueses se orientavam pelo Sol, o pequeno Fausto teve as primeiras lições sobre os mistérios da natureza através das intuições da mãe: «Ela nunca me disse que cheirava a terra molhada. Em África, apercebemo-nos da chuva muito antes de ela chegar. A minha mãe dizia-me ‘cheira a chuva’ e não ‘vai chover’». Uma presença que não o abandona, que chora nele as recordações mais cálidas e a dor mais fina: «Ficou lá, morreu quando eu tinha 17 anos, pouco tempo antes de eu vir para cá estudar. Foi a pessoa da família que mais me marcou, que mais me tocou. Por tudo o que me deu, pelo carinho. Dizia-me que eu tinha um pescoço de príncipe. A despedida foi dolorosa pelo que vi do que ela sofreu».
Atravessando em diversas ocasiões o Atlântico com a mãe, quando ela vinha à metrópole afagar saudades da família, por vezes Fausto e ela ficam grandes temporadas em Portugal, país que ele estranha. A primeira impressão que tem de Lisboa quando o Pátria atraca é de um contentamento submergido quase de imediato pelo descontentamento: «A imagem que guardo é de uma cidade gigantesca com coisas deslumbrantes, mas estar aqui foi sempre difícil, sentia-me rodeado de gente pequena, muito ansiosa do seu canto. Os gestos de grande dádiva que sentia em Angola, talvez por defesa da comunidade branca em relação ao ambiente hostil, não encontrava aqui».
Com os massacres da UPA no norte de Angola, em 1961, soa a hora das inquietações para os colonos portugueses. Fausto está com 13 anos e tem o seu primeiro encontro com o lado mais obscuro do homem: «Foi a minha primeira imagem do terror. Circulavam fotografias de mulheres e crianças todas esquartejadas, era difícil entender aquela brutalidade. E, apesar de em Nova Lisboa não se passar nada, começam a aparecer soldados a patrulhar a cidade. Lembro-me de que havia um soldado que ficava a noite toda deitado junto à minha casa. Sozinho, estendido no passeio, com uma metralhadora em cima do tripé apontando sei lá para onde».
A guerra e a noção do perigo
Mas é com o pai, que o leva nas suas viagens de negócios, que Fausto entra no universo dos adultos e das grandes descobertas. O início da guerra colonial traz-lhe a noção do perigo, sentimento avesso à adolescência. Até ao Lobito, no percurso de carro, os sentidos estão de alerta aos múltiplos ruídos que agitam a mata, não vá haver surpresas. Instalam-se no melhor hotel da cidade e, à noite, um ritual costumeiro maravilha o rapaz. A cama do quarto, para os proteger das picadelas dos mosquitos e das febres do paludismo, está envolta por um mosquiteiro. Mas, sempre que chega a hora de recolher, um negro fardado de branco bate delicadamente à porta. Traz uma gaiola cheia de osgas, e segue-se a pergunta que Fausto já recebia sem espanto: «Quantas quer?». E os répteis, com direito também a cama lavada, por ali ficavam a cumprir a sua missão. Nesta idade, os acontecimentos mais banais entranham-se no imaginário com a mesma excitação do estado febril: «Adorava ver as osgas a comer mosquitos. Como são transparentes, via todo o processo desde a caça até o insecto ser deglutido pelo aparelho digestivo, tudo. O único bicho que ainda hoje consigo matar é o mosquito».
Filho de um comerciante próspero, Fausto, que anda no Liceu de Nova Lisboa e tem alguns colegas negros, cedo começa a interrogar o sistema colonial. A crítica chega-lhe pela intuição e não pelas razões ideológicas – que só o haveriam de arrastar, com milhares de outros estudantes, quando voltou à metrópole para frequentar o curso de Ciências Sociais e Políticas, no então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (hoje ISCSP): «Havia uma diferença entre brancos e negros. Um sistema de apartheid. Ainda me recordo de em Nova Lisboa estar escrito nas casas de banho públicas do jardim: ‘Europeus’, ‘Africanos’».
O gosto pela música chegou sem aviso prévio, como se de mais uma extensão do seu corpo se tratasse. O liceu não era para todos. A distinção entre o português de primeira, aquele que nascia em Portugal, e o de terceira, os africanos, era o ferrete do império colonial. Contam-se pelos dedos da mão os que conseguem furar o sistema. E é com um colega de turma, um negro exímio na guitarra, que Fausto começa a aprender os primeiros acordes: «Os poucos negros que estudavam eram apoiados pelas missões protestantes ligadas aos americanos, que deram mais tarde os grandes quadros da UNITA. Sem formação musical, sempre fui um autodidacta, aprendi vendo os outros a tocar, e o 25 (nós não nos tratávamos pelos nomes mas pelos números) pode-se dizer que foi o meu primeiro mestre. Depois havia um grupo do bairro ferroviário, Os Ferrovia, que tinha um guitarrista notável. Aprendi com ele, observando».
Os anos 60 marcam a década de ouro do rock. Os Beatles, encarnando os ideais que dão voz às revoluções sociais e culturais da época, são a fonte de inspiração de uma geração inconformada. Aos 14 anos, Fausto, com quatro amigos, funda Os Rebeldes, um grupo rock que, com penteados ‘chapa quatro’ do quarteto de Liverpool e com uma caveira desenhada no bombo da bateria, faz furor nos bailes e cinemas de Nova Lisboa: «Começa-se sempre por imitar alguém. O Cliff Richard (ainda da época dos Shadows), os Rolling Stones, mais tarde, foram as minhas principais influências na época. Mas a loucura foi com os Beatles, que surgem já com acordes compostos, não era o acorde limpinho dos Shadows».
Em 1968 atravessa de novo o Atlântico. Vem para a faculdade para se fazer diplomata, curso que só terminaria muito depois da revolução mas que não lhe trouxe proveito a não ser transformá-lo num dos melhores embaixadores da música portuguesa. As universidades fervilhavam, o fim da guerra colonial e a queda do Estado Novo eram imperativos para a maioria dos estudantes. A universidade é um dos palcos da conspiração, e a PIDE anda-lhes no encalço. Fausto chega sem qualquer ideologia política, mas rapidamente se enquadra na franja trotskista.
O primeiro disco
Logo nesse ano tem o primeiro contacto com a canção de protesto. A voz de ouro de Zeca Afonso, peça-chave da renovação da música portuguesa, convida à luta contra o regime, à construção de um país sem desigualdades sociais e ao fim da guerra. Um dia, Fausto, que continua a cantar e a compor, tem conhecimento de que Zeca estaria no Instituto Superior Técnico para mais uma sessão semi-clandestina. Desempoeira o medo e desloca-se ao IST. A vida de um homem é feita de acasos: hoje ainda guarda a primeira imagem daquele que, mesmo nos desencontros, o orientou nas opções musicais: «Enquanto o pessoal não entrava na cantina, onde ele ia actuar, o Zeca andava no corredor com as mãos nos bolsos, de um lado para o outro. Parecia uma fera enjaulada. Ouvi-lo foi desconcertante, tinha uma voz belíssima».
No ano seguinte um colega de faculdade pede-lhe uma cassete com as suas canções e entrega-a a João Martins, produtor da Philips, e Fausto empresta o seu próprio nome ao seu primeiro disco (um EP, de 1969, ampliado no ano seguinte para LP). Uma das quatro canções, ‘Chora Amigo, Chora’, numa época em que a cantiga se quer livre de dores românticas, irrita uma ala da esquerda. António Macedo, outro cantor de intervenção, responde-lhe à letra com ‘Canta, Canta, Amigo Canta’, convite à insurreição popular: «Vem semear tempestades/se queres receber bonança». Fausto recorda com um sorriso manso a época em que os extremismos não passavam de uma única arma para golpear a realidade: «A minha canção era bonita mas não foi bem recebida».
Ainda nesse ano, um festival patrocinado pela Rádio Renascença leva-o às Caldas da Rainha, onde conhece Adriano Correia de Oliveira, outro intérprete pioneiro da música de intervenção. As discrepâncias ou afinidades das amizades determinam os rumos contraditórios da vida. Homem do PCP com provas dadas na grande crise académica de 1962, Adriano, tal como Zeca, começa por fazê-lo arrepiar caminho: «Na altura, depois de os conhecer, deixei de cantar. Eles tinham vozes notáveis, e eu pensei: ‘Estes gajos é que sabem cantar’. Passei a cantar só em casa, mas continuava a compor e a tocar guitarra».
O fim da guerra colonial torna-se uma exigência desta geração. Cantores como José Mário Branco, na mira da PIDE, e Luís Cília, partiram para o exílio. Fausto tem a surpresa de ser chamado para a tropa: «Muitos colegas meus desertaram, quase todos partiram para a Suíça, mas eu nunca tive coragem. No entanto, nunca me imaginei a ir combater em Angola e nunca me apresentei em Mafra. Fui considerado refractário. Mais tarde, um amigo conseguiu dar a volta ao meu processo e tornei a ser chamado, mas para soldado raso. Felizmente surgiu o 25 de Abril, se não era considerado desertor. Meses depois apresentei-me, e um coronel que tinha o meu processo disse-me: ‘Não estou de acordo com o seu comportamento, pois recusou-se a prestar um serviço à pátria, mas também não estou de acordo com a sacanice que tentaram fazer-lhe’. Eu era aluno com uma média de 14 ou 15, e, nestes casos, o serviço militar obrigatório ia sendo adiado».
O encontro com Zeca Afonso
As reservas do medo iam-se esgotando, e pelo país fora operários compareciam nas sessões de baladeiros, encontros de protesto contra o regime. Em 18 de Janeiro de 1973 comemora-se a greve-geral de 1934 e o célebre ’soviete da Marinha Grande’. Numa colectividade marinhense, a sala está à pinha para mais uma sessão encabeçada por Zeca Afonso. Fausto vai lá a convite de António Pedro Braga, estudante do Técnico e cantor, que nessa noite o apresenta ao homem de ‘Grândola, Vila Morena’.
No palco, os cantores sentem um arrepio quando um polícia irrompe com a notícia. Proibidos de cantar, mantêm-se no palanque em silêncio, e é a assistência de operários vidreiros que canta o repertório da noite. Na rua, a GNR a cavalo aguarda um pretexto para lhes partir os ossos: «Foram os operários que tomaram a iniciativa. São momentos inesquecíveis de grande coragem, e nós, claro, uns mais preparados do que outros, com medo a ver quando nos caíam sobre os costados. E foi depois dessa sessão frustrada que o António Macedo, ao saber que o Zeca estava de partida para Madrid – onde ia cantar na Universidade de Jornalismo – mas não tinha guitarrista, lhe sugere o meu nome: ‘Se precisas de um guitarrista, não tens melhor do que o Fausto’».
E ele vai. E a esta viagem sucederam-se outras na companhia de Zeca e de Adriano. A revolução não tem fronteiras, e a vizinha Espanha, nas mãos de Franco, é terreno fértil para se levar a mensagem.
Nos concertos, Zeca e Adriano, depois de quase duas horas a cantarem sem pausas, diziam-lhe: «Canta lá tu alguma coisa, que estamos cansados». Enquanto os mestres se recompõem, Fausto vai perdendo o medo: «Eu cantava como podia, mas não tinha a voz canora de que eles gostariam. O Zeca costumava dizer que o Adriano tinha a escola do António Menano, o mais conhecido e popular cantor dos fados de Coimbra, que ensinava a cantar com uma régua no diafragma. E o Adriano cantava com o diafragma todo. O Zeca era a escola do Edmundo Bettencourt, tinha uma voz lindíssima, mas a do Adriano era a mais bela. Eu não tinha escola nenhuma, pegava na guitarra e cantava».
O público umas vezes reagia bem, outras com indiferença. Mas numa universidade em Santiago de Compostela, num desses intervalos para o repouso dos guerreiros, Fausto – que nas férias grandes continuava a ir a Angola, inspirando-se com a tropicalidade – canta uma canção que compôs de António Macedo: «Foi um estrondo». O ritmo africano de O Comboio Malandro Passa deixa os estudantes empolgados. Seis dias antes do 25 de Abril, e como se de uma premonição se tratasse, grava em Madrid, na companhia de Zeca e Adriano, Para o Que Der e Vier, o seu segundo álbum.
Com a canção ‘O Patrão e Nós’ pisa o risco que o poderia levar aos calabouços da PIDE: «Vivemos no Casal Ventoso/moramos num barracão/o ano inteiro a trabalhar/sem verões nem primaveras/temos filhos, muitos filhos/ sem escola nem sacola/mas isto vai acabar/ à porrada no patrão».
Mas neste LP o cantor põe fim a uma etapa, e a sua obra até aí passa a ser-lhe estranha: «Esgotei com esse álbum as minhas influências dos trópicos. Lembro-me de que, em 1978, estava com o Zeca na ilha de Luanda a discutir os nossos caminhos. Ele – e na sua discografia isso está claro – tinha caminhado para a polirritmia africana e até sul-americana. Eu, curiosamente, por influência dele e do Adriano, caminhei para a música tradicional portuguesa. O Zeca queixava-se de uma certa quadratura da música popular e de, dali, já não haver inventiva possível. E acusava-me de estar a jogar com uma memória. Mas eu continuei nesse rumo. É possível criar a partir desse padrão, desenvolvendo-o e estilizando».
A revolução traz inevitavelmente uma golfada de ar novo. Sessões de canto livre levam a palavra de mudança de norte a sul do país. Cantores como José Mário Branco e Luís Cília regressam. Mas o PREC (Processo Revolucionário em Curso) leva com ele a euforia que embriagava Portugal. Os baladeiros, que até aí se mantiveram unidos, trilham cenários ideológicos diversos. Uns ligam-se à extrema-esquerda, e Zeca, que antes andara perto do PCP (embora sem nunca se comprometer com qualquer grupo), vincula-se à LUAR de Palma Inácio. Fausto mantém-se independente, sem ligação orgânica a qualquer partido: «O PREC deixou marcas. Afastou pessoas, houve confrontos ideológicos. O Zeca cortou com o Manuel Alegre, eu também tive as minhas clivagens, como com o Zé Mário Branco. Com o Zeca não houve divergências políticas, apenas musicais. Depois acabámos todos por nos reencontrar».
Com a voz de barítono (que às vezes atinge tons de tenor) escondida como se as cordas vocais estivessem presas num labirinto, Fausto discorre sobre esses tempos com humor britânico: «Nunca pertencendo a nenhum partido, sinto-me sempre acusado, nunca reivindicado. Porque uns dizem que o Fausto é do PCP, outros da UDP, mas nunca alguém disse: ‘Ó pá, o Fausto é nosso’».
Em 1977, com o álbum Madrugada dos Trapeiros, começa a sua viragem. As promessas da Revolução dos Cravos esfumavam-se, mas o cantor de intervenção mantém-se na mesma linha. Atravessam-no as preocupações com a natureza, a poluição fica impressa no tema ‘Se Tu Fores Ver o Mar’ (Rosalina), e a crise que consome o país e levaria um ano depois à primeira visita do FMI dá conteúdo à canção que assenta aos nossos dias como traje de defunto: ‘Uns Vão Bem e Outros Mal’. Mas desfilam agora as toadas tradicionais portuguesas, que viriam a tornar-se no carimbo do autor, como o corridinho, repasseados e laços, os lavacolhos, o ritmo de Santa Marinha ou o das adufeiras: «Tanta gente sem trabalho/nem tem pão, nem tem sardinha/e nem tem onde morar/do frio faz agasalho/que a gente está tão magrinha/da fome que anda a passar/o governo dá solução manda os pobres emigrarem/e os emigrantes que regressam/mas com tanto desemprego/os ricos podem voltar/porque nunca trabalharam. E assim se faz Portugal/uns vão bem e outros mal».
Viragem no murchar dos cravos
Em 1982, com Por Este Rio Acima, ocorre a grande ruptura na carreira de Fausto. O seu sexto LP seria o primeiro da trilogia agora finalizada, e foi considerado pela crítica um dos álbuns mais marcantes da música popular portuguesa. O autor descreve o percurso: «Na arte inovamos quando andamos à procura de qualquer coisa que traz uma forma de escrever, de compor, própria. Durante anos andamos à procura de um caminho, e isso é importante para a forma como eu vejo os três discos».
A trilogia é passada a pente fino, a concepção da obra, agora completa, estava desenhada desde o início: «Em Por Este Rio Acima apareço a tocar uma chula, e aí dá-se uma ruptura com a opção estética do rock, que estava na moda. Baseio-me na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que viajou pelo sonho, pelo conhecimento. Voltou pobre, não enriqueceu. Essa viagem é, essencialmente, o percurso pelo mar e acaba com a aproximação à terra, o regresso a Portugal. Crónicas da Terra Ardente, o natural desenvolvimento do primeiro, é a aproximação à terra narrada através dos naufrágios. Este é a entrada pelo continente africano adentro. Viagens terrestres, ainda que algumas sejam subindo rios, atravessando grandes matagais. Por Este Rio Acima começa com o som do mar, Crónicas era mar e vento. Ou seja, é um ciclo que se fecha. Não deixa de ser intencional».
E para que a História não mergulhe no silêncio, ele converte-a em memória. «Não me fico por valores, faço a interpretação da História e às vezes passo para o lado contrário da versão oficial. A História é normalmente escondida pela epopeia. O naufrágio de Manuel de Sousa Sepúlveda, que canto nas Crónicas, é o contrário da versão épica que o trata como um coitadinho. A opção foi dele, foi ele quem, durante a caminhada, decide colocar a mulher e os filhos legítimos à frente da coluna com protecção, enquanto o filho bastardo vai no fim da fila para o que der e vier. Evidentemente que, depois de tudo o que a família passou, e ao ver a mulher a ser violentada pelos negros na praia, acabou por enlouquecer. Aí, saio da visão tradicional, acho que ele não tem princípios e invectivo-o: ‘O que é que foste fazer, Sepúlveda?!’».
Em todo o álbum, aliás, descobre-se esse desejo de ir ao encontro das personagens, de as interrogar, de as transportar no tempo como uma profecia do futuro. Mas nem sempre consegue o seu objectivo. No antepenúltimo tema, ‘A Embala de Silva Porto’, dedicado a um explorador e comerciante português que durante décadas foi o único europeu conhecido pelas gentes do planalto do Bié, Fausto, incapaz de cantar vida tão aventurosa numa canção, recorre a repetidos flashes. Mas não fica satisfeito: «Ele contava que, com apenas 12 anos, quando o pai lhe perguntou o que queria da vida, respondeu: ‘Fazer comércio’. Partiu para o Brasil. Mais tarde, acaba por se instalar no interior de Angola. Vivia como um soba, numa grande palhota ladeada por laranjeiras, com casas à volta para as várias mulheres e filhos. Como sertanejo, comprava no litoral, trocava no interior e vendia de novo no litoral. Tinha uma grande influência naquela gente, mas, com a questão do Mapa Cor-de-Rosa e os ingleses a cativarem as populações, sentiu-se na obrigação de ajudar Serpa Pinto e Pedro Aires, que aparecem para ocupar, demarcar, sem conflitos o território. Ele tenta interceder junto do soba, que já era um súbdito inglês. Mas, em público, o outro puxa-lhe as barbas, enxovalha-o. Matou-se. Portanto, acabo o trabalho no século XIX, com o último romântico sertanejo português. O resto são expedicionários, a marcar território, a submissão ao poder, que já não me interessa e já foi cantado pela minha geração».
Ver a História ao contrário
E a leitura do passado transforma-se com o cantor no desejo de o estender ao presente. O peso das recordações abate-se sempre no momento da criação. Em pequeno, Fausto, numa das várias viagens de negócios que fez com o pai, ficou por uns tempos no Balombo, vila na província de Benguela por onde passara Silva Porto no início do século anterior. Na pensão onde se hospedam, as brasas do fogão são lançadas diariamente da cozinha para a rua. Com o tempo, o enorme monte de cinzas enfeitiçou o espírito da criança, que o decide trepar: «Foi um drama, fiquei com os pés todos queimados, e nesta canção, como Silva Porto foi sempre uma personagem que admirei, queria intervir com ele como se lhe pudesse ainda contar que ali onde ele esteve foi onde queimei os meus pezinhos. Mas como é que numa canção, que teria no máximo cinco minutos, eu resumia a sua história de vida e a minha?».
Com esta obra, Fausto demonstra que a História é sempre um projecto inacabado que pode ser inventado a cada momento, como se verifica quando contraria a versão de Conde de Ficalho sobre a mudança de comportamento e sobre as próprias convicções religiosas de Pêro da Covilhã, espião ao serviço de D. João II que, em 1487, é enviado em busca de notícias do mítico reino de Preste João e das rotas comerciais dos produtos que chegavam a Itália. Treinado por cosmógrafos régios e falando um árabe apurado, chega ao Egipto, terra de infiéis, após um longo percurso, e aí compra produtos para se disfarçar de comerciante. Depois de várias peripécias e de ter sobrevivido às febres do Nilo, acaba por chegar com outros peregrinos a Meca, cidade sagrada do Islão – onde, trajando como um muçulmano, reza em penitência ao profeta Maomé.
O Conde de Ficalho atribui esta iniciação ao islamismo como uma forma de sobrevivência no mundo árabe: «O mais pequeno incidente que denunciasse a sua qualidade de cristão podia ser o sinal de uma morte imediata. Foi, portanto, sob a aparência de um zeloso maometano, com a cabeça rapada e descoberta, que pôde passar de Djidá a Meca e penetrar no El-Haram, ou recinto reservado da grande mesquita».
Mas Fausto faz outra leitura. E, em várias letras sobre este tema, escuta-se o grito das culturas, a sua atracção e vitória. Pêro da Covilhã, para além de se ter ajustado à cultura árabe, optando pela poligamia e multiplicando a filharada, dedicou-se ao comércio e nunca regressou a Portugal. Em‘De um Crescente Dourado’ dá-o como convertido ao islamismo: «Pela porta da salvação/e na abóbora verde/irradiado/viu por fim o deslumbrante clarão/de um crescente dourado/pela claridade mais quieta/pelo ar mais suave e fugaz/no grande arco do círculo/emergiu/e fluiu/em paz».
E assim Fausto, mais uma vez, dá ao passado uma oportunidade de reaparecer, indo não só ao encontro das linguagens mas também das formas de conduta. O álbum parece a banda sonora de um filme de aventuras, que transforma a História numa peça viva. O trabalho, que começa com Diogo Gomes a subir o Gâmbia, muda de cenário para Pêro da Covilhã a baixar do Norte de África em direcção à Etiópia. Aí, em banquetes reais, come-se no chão, os animais chegam à mesa vivos e são abatidos na presença dos convivas – que, findos os manjares, com a ajuda de Baco, brindam os corpos com incansáveis orgias.
Segundo o Conde de Ficalho, o «decoro de princesas e damas sofria quebras singulares». E o cantor, em ‘Bárbaras Iguarias’, como se de mais uma personagem se tratasse, transita no tempo: «E bebidas em cornos de boi/águas ardentes das libações/nas bacanais assombrosas/devassas/à noite a negra luxúria crescia/e a postura de princesas e damas/em toques de moiramas/pelo decoro descia/quebras singulares sofria/e na devassidão/a volúpia engrossava/já se montava/e mais galopava/como Sodoma e Gomorra/um dia».
Gravar com Represas, Palma e Mário Branco
Assim se canta, neste álbum, da boa e a má vida que os exploradores e comerciantes portugueses em tempos foram levando. E em Junho, num pequeno estúdio em Linda-a-Velha, Fausto e companheiros de outras jornadas, Luís Represas, Jorge Palma ou José Mário Branco, dão os últimos retoques ao final da trilogia anunciada há três décadas. À frente do coro, Branco, de jeans, t-shirt e sandálias, e com o proselitismo de um franciscano de sempre, não deixa escapar nada. «Estás fora do acorde» é uma das frases que fazem tremer Vítor Milhanas, baixista e co-produtor com Fausto deste álbum. Voltam à estaca zero, repetem até que o preciosismo que Branco coloca em tudo o que faz se esgote.
Vítor e Fausto trabalham juntos há largos anos, e nem necessitam de trocar palavra, basta um olhar entre ambos para se concluir que a repetição valeu a pena. Ouvem de novo ‘Por Altas Serras de Montanhas’, que dá nome ao novo álbum. A letra, de estrofes longas, muito ritmada, e a voz de Fausto – que, de timbre muito flexível, é capaz de mudar de um registo para outro com grande agilidade – deixam o coro sem fôlego: «Quase morta por fragosos caminhos/vai a corja por caminho nenhum/e vamos nós outros todos com ela/rente à morte e a lugar algum/em subidas e pelas calmarias/nas descidas da calma que fazia/entre alimárias de várias nações/pelas serranias de altura e fundura/e no murmúrio da orações./ Entre a ‘Kuala’ ardente e aquela ‘daga’ fria/luz a serra incandescente/que da branca neve ardia».
A voz paciente de Vítor chega à tripulação como a notícia desejada de quem anseia pôr pé em terra: «Temos take!». Fausto, tão perfeccionista como José Mário Branco, quer ouvir as outras versões. Represas, no laço da camaradagem companheira do grupo, ri-se: «Faz copy/paste da melhor». Um curto intervalo para ganharem balanço para outra viagem. Num quintalzinho aproveita-se o sol sovina, vazam-se uns uísques, queimam-se cigarros. Branco põe as mãos no fogo pelo álbum: «É um trabalho muito orgânico, não é nada intelectualizado, vai ser um sucesso».
Cabe a Vítor controlar o recreio e pôr ordem nos trabalhos. Segue-se Costa a Contra-costa, que narra a história dos pombeiros Pedro João Batista e Amaro José, que nos finais do século XVIII, a mando do governador-geral de Angola, tinham por missão descobrir a ligação por terra entre a costa ocidental e a costa oriental de África. Na letra, Fausto propõe vários cenários para o expediente dos aventureiros: «Há situações adoráveis que surgem pela falta de conhecimento. Por exemplo, um dos pombeiros, que andava sem bússola sem nada que o orientasse, diz: ‘Hoje andamos com o sol às costas’. E mais à frente: ‘Hoje andamos com o sol do lado direito’. Ao chegarem ao reino Cakemgue, já em Moçambique, perguntam ao rei como é o caminho dali em diante, e este, para mostrar que não havia perigo, responde-lhes: ‘A vossa viagem está então muito bonito’».
E José Mário Branco, que retira da história a mesma excitação, propaga a risota: «Entretanto já tinham levantado a madrugada pela manhã». Fausto, esse, demonstra que a realidade está sempre por concluir, e que é sempre possível intervir no seu percurso: «Aqui já sou eu a aderir à linguagem deles, a entrar no esquema deles». Assim, todo o álbum vive de momentos em que a História se afirma através da sua visão. E, se às vezes a narrativa obedece aos cânones realistas, noutras é o surreal que emerge, num jogo entre o autor e as suas personagens históricas: «Fabricámos o cerco ao pé do rio Ancula/depois de três de água corrente/com dois leões a ‘berrar’ perdas e danos/toda a noite/e toda a noite a dormir para acordar».
Quatro séculos de viagens
Com os longos braços aparelhados ao longo do tronco esguio como se fossem remos, que se erguem expressivos e ágeis, Fausto desbrava o sentido da sua obra: «Não canto a epopeia que normalmente esconde a História, mas a diáspora. Canto aqueles corajosos portugueses que partiram numa casquinha de noz à procura do novo mundo, em busca do conhecimento de novos horizontes, da aventura, aqueles que, numa actividade normal, desejam fazer comércio. Mas também falo das suas misérias. O título deste álbum significa a aventura, a descoberta do ouro. Eles diziam aos portugueses que o ouro se encontrava por detrás das montanhas».
E a obra, como se de uma viagem no tempo se tratasse, desdobra-se à maneira de um filme de aventuras dirigido por Spielberg. Uma viagem que vai do século XV, com Diogo Gomes de Sintra – moço de câmara do Infante D. Henrique, feito navegador com a missão de descobrir as rotas de comércio do ouro –, até António Francisco Silva Porto – comerciante que no início do século XIX se estabeleceu no sertão angolano e, na sequência do Ultimato britânico, se suicidou embrulhado na bandeira portuguesa (após um soba, feito com os ingleses, o ter enxovalhado em público).
As 23 canções que fazem a história empurram a narrativa de cenário em cenário e transformam quatro séculos de viagens numa única expedição. Através de excertos de cronistas como Gomes Eanes de Zurara, Diogo Gomes, Luís Cadamosto ou o Conde de Ficalho, que antecipam as letras para melhor situar o público, o cantor dá-nos entrada numa verdadeira frota com os portugueses a transporem rios desconhecidos e a entrarem, uns do ocidente, outros em sentido contrário, uns pelo norte, outros pelo sul, continente africano adentro. E vão sem saber o que os espera.
Um disco e um ovni
Como se capitaneasse uma dessas caravelas, Fausto participa da mesma emoção, um sentimento que vibra no presente: «Há relatos que me emocionaram e me fizeram parar, até chorar. Inspirei-me em vários cronistas, mas apesar da componente histórica, de me encontrar encostado ao cenário do passado, falo da actualidade, daquilo que permanece. As guerras, os confrontos, os mercados, o petróleo. Muitos partiram à procura de melhor condição de vida e hoje muitos partem, porque o país já não tem nada para oferecer. Eles procuravam novos mercados, sonhavam com a descoberta do ouro, e nós continuamos subjugados pelo petróleo. Ainda ninguém tinha reparado, mas quer em Por Este Rio Acima, quer em Crónicas da Terra Ardente, nas capas existem, no primeiro, um disco voador e no segundo um ovni. Este também vai ter um objecto não identificado, o que explica precisamente a interpretação do passado através do presente».
O conhecimento é arca de amontoadas razões. Tanto pode deslumbrar como impulsionar os maiores conflitos. E os portugueses chegam e ficam enfeitiçados com a raça das gentes que aquelas terras produzem. Em ‘E Fomos pela Água do Rio’, a segunda canção do duplo álbum, o primeiro tema é apenas instrumental. Fausto, numa toada morna, canta a saga de Diogo Gomes que, na segunda metade do século XV, sobe o rio Gâmbia até Cantor, em busca de informações sobre as rotas que ligavam as regiões auríferas do Senegal, do Alto Níger e do entreposto comercial de Tombuctu às rotas saarianas que desembocavam no litoral marroquino. «E fomos pela água do rio/em busca daquela terra/ e a maré foi de rosas pela boca/na calmaria tão grande/ e assim como fosse cansado/a água vai muito mansa/e o meu corpo suado/embalado/flutua e descansa».
Letras com imagens fortes
As imagens fortes da letra criam cenários cinematográficos e transportam a narrativa para uma visão colectiva: «E vimos em nossos olhos/ que em maravilha se olharam/uma cor na água do rio/desvairada na outra».
O ponto de vista de todas as letras é sempre o do português. E a descoberta do outro continua com ‘Viemos Nascidos do Mar’, inspirado nos relatos de Cadamosto, navegador veneziano ao serviço do Infante D. Henrique. A canção, muito ritmada, narra o quotidiano e o espanto de quem avista pela primeira vez os exploradores brancos, que julga estarem pintados. Fausto, para contrabalançar o lado da História Trágico-Marítima, levanta o lado cómico dos encontros inesperados:«E muitos se espantam da nossa brancura/entretanto/e muitos pasmavam de olhar/olhos claros assim/palpavam as mãos e os braços/e outras partes/portanto/ esfregavam de cuspo minha pele/para ver se era/ enfim/uma tinta/ou se era de estampa/uma carne tão branca». Mas também os navegadores pasmam de espanto. E assim distinguem os árabes dos negros: «Os primeiros baços e os outros pardos e uns escondem as suas vergonhas/cobertas de estopas/ e eram grandes e gordos/e baços/e enxutos/os pretos/pelas ventosidades confundem traseiros e bocas/e tapam aqueles e estas».
E a caravela pára, e os homens de Diogo Gomes saltam para terra e seguem por florestas virgens e matas selvagens onde pululam insectos vários e plantas espinhosas. ‘Fascínio e Sedução’, baseado num episódio narrado por Zurara, em que este descreve uma tentativa de negociação de portugueses com árabes, é das canções com maior carga sensual do álbum.
Estando o cavaleiro Ahume Meinam interessado em trocar guinéus que trazia cativos por mercadorias dos exploradores portugueses, não parte em direcção à caravela portuguesa ancorada no rio sem deixar dois reféns nas suas tendas. Os dois homens, que em Portugal estavam habituados a ver mulheres vestidas até ao pescoço, ficam cativos dos encantos das apetecíveis odaliscas que os guardam. Elas, no desejo do câmbio cultural, assediam os lusos – que, na mesma lógica do comerciante árabe, temem uma cilada e tentam resistir-lhes. O próprio Zurara deixa ao leitor a responsabilidade de imaginar o que nas alcovas se passou: «Mas se isto era enganosamente cometido ou se a natureza maliciosa de si mesmo os constrangia, fique ao encargo de cada um o determinar como lhe bem pareça. E mal eles saem as mulheres começam a cativá-los com danças, e eles muito receosos pelo que estava a acontecer».
E Fausto, numa espécie de parceria com o cronista, nada acrescenta ao desfecho, mantendo a tensão erótica: «E elas são muito luxuriosas/da sua lascívia/e muito se animam em gestos/por luxuriar/ e transluzem na dança das pernas/pela arte das mãos/os olhos que brilham e fitam/ de alto a baixo/a questão/e deslizam no ventre/dos corpos suados/os dedos/se no deleite/era muito mais doce/ essa consolação/que desenha/pela curva da coxa/ a sombreada elegância/ e a cor do meu e do seu/à mais curta distância».
Longe da épica camoniana
A escravatura, essa tentação tão actual da subjugação do outro, não escapa ao escrutínio do autor. Antão Gonçalves, capitão de caravela e guarda-roupa do Infante, que levava mercadoria para trocar por infiéis, oferece em ‘Luz Mais Frágil das Auroras’ a forma de actuar dos portugueses que, dissimulando os seus passos pela mata, aguardam as presas: «Ó que bendito contentamento seria/levarmos amostra/destes nativos bravios/velando a noite/e andando no pé das espias/de passo agachado/no sussurro dos cicios/por terra boémia/a saber/ se sentimos gente/ e no cheiro do rasto de alguém/do levante ao poente/sem haver sentido de nós/arrebatarmos/cativa/uma alma/encontrada que fosse/vinda assim de vencida».
Mas Fausto afasta-se da épica camoniana e da história oficial que glorifica os feitos lusitanos. Além do mercandejar de escravos, em letras como ‘À Sombra de Ciladas’, a morte não mora ao lado. Nos confrontos travam-se rijos combates e os mortos contam-se dos dois lados da barricada; e os portugueses saem fustigados até as carnes lhes caírem em farrapos. O texto transporta-nos para o visionamento da tragédia: «Mas há gente encoberta/à sombra das ciladas/pela nossa perdição/por sombras erguidos/e lançam-nos peçonhas/rasgam-nos as chagas/ talham-no do rosto/ acerca/toda esta queixada/sangrados e purgados/ inocentam-se os feridos/no socorro tardinheiro/na tormenta dos caídos». Assim «sofremos trabalhada morte». E despedem-se dos seus mortos com orações: «Deus receba as suas almas/ e no lugar/além/imaculados sejam também/e repousem em paz/ámen».
O cantor relaciona os acontecimentos: «Mesmo quando se fala da dor dos outros, adopto sempre o ponto de vista do observador português, nunca o lado africano, que não conheço, não há relatos. Até quando abordo o lado africano é através do olhar dos portugueses que os observam. Como no caso de uma mulher negra da Etiópia, fortíssima, que tentaram capturar mas, não a conseguindo dominar, levam o filho e fogem para dentro do barco». Trata-se de ‘A Mais Débil das Lágrimas’. Do barco, os exploradores observam o sofrimento da mãe, que se acabaria por entregar: «A mais débil das lágrimas/cintila/junto ao rio/na outra margem/ajoelhada e debruçada/a tua imagem/tão quieta e tão distante/e mais além/suplicantes/também/os teus braços de mãe».
O processo de criação de três décadas desta obra leva Fausto não só à interpretação das aventuras e desventuras dos outros como ao inevitável encontro com o seu mundo, os seus fantasmas, ou com pedaços de tesouro da sua vida. Foi precisamente com a mãe que Fausto, que a canta neste álbum em ‘O Perfume das Chuvas’, iniciou a sua diáspora: «Eu fiz parte desse percurso. E várias vezes o experimentei em viagens com a minha mãe de Angola para Lisboa e vice-versa».
«Escrevo melhor que alguns poetas»
O álbum, que virá a público a 21 de Novembro pela mão da editora Universal, pode ainda não fechar o ciclo das descobertas trágico-marítimas cantadas por Fausto. José Mário Branco chegou a sugerir-lhe uma tetralogia: «Isso nunca, mas uma pequena adenda sim. Ou seja, um disco simples». O cantor não se considera o Camões dos tempos modernos, mas também não renega comparações: «Não me considero poeta. Mas escrevo canções, o que não é uma arte menor. O poeta escolhe a palavra que já tem em si a musicalidade que ele quer dar. Quando escrevo, a palavra necessita da música que lhe dá a forma. A leitura solitária de uma letra pode não fazer sentido. Não sou o Camões mas escrevo melhor do que alguns poetas».
A carta de apresentação do seu novo caminho está em segredo. Fausto, que não escreve canções com a caneta com que assina os cheques, é supersticioso nas revelações. Mas de uma coisa está certo: fez o trajecto do esquecimento à memória. Como diria Nietzsche, «Estou na fase de pintar o mesmo quadro aperfeiçoando-o. Atingi o meu próprio estilo».
(Artigo originalmente publicado na revista Tabu a 18 de novembro de 2011)