Salvar as casas operárias do Bairro da Lomba

O bairro é de certo modo construção coletiva na medida foram, em grande parte, os moradores inquilinos/as que melhoraram e qualificaram o seu habitat, propiciando um forte sentimento de comunidade. 

O antigo Bairro da Lomba é um dos poucos bairros operários da cidade do Porto que ainda mantém uma comunidade viva e relacional. As suas ruas estreitas e tortuosas, as suas casas operárias e populares, as suas ilhas com as suas hortas e quintais ainda conservam toda uma estrutura de tecido urbano marcadamente  popular e proletário do século XIX. As suas casas operárias não são produto de uma qualquer racionalidade e funcionalidade formal mas resultado da falta de planeamento habitacional perante o êxodo rural, em que, a par dos interesses de mediadores e proprietários de terrenos, foram uma resposta criativa e popular à necessidade de habitação em nova comunidade urbana. A localização do Bairro da Lomba na parte periférica à cidade do centro justifica-se pela necessidade de encontrar casas baratas e infraestruturas em alternativa à cidade do centro superpovoada. O bairro é de certo modo construção coletiva na medida foram, em grande parte, os moradores inquilinos/as que melhoraram e qualificaram o seu habitat, propiciando um forte sentimento de comunidade. 


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O bairro da Lomba foi criando e desenvolvendo um sistema de relações sociais, económicas e culturais a partir das quais se construiu gradualmente o referido  sentido de comunidade. A Associação de Moradores da Lomba é um exemplo vivo desta dinâmica vicinal, reivindicando as culturas populares, recuperando a história do bairro, ao mesmo tempo que tem promovido as mais diversas atividades desportivas e culturais, prova de uma resistência criativa.

Foi da relação entre habitantes e espaço, casas e moradores/as, famílias e vizinhos/as que a Lomba se transformou num ambiente fabricado pelos seus ocupantes, incluindo um processo de auto-construção relacional ao longo do tempo. O Bairro da Lomba é produto deste processo que tem como base o antigo cadastro da cidade que lhe serve de base e lhe estrutura a forma arcaica e irregular, vernacular e popular. A morfologia deste bairro remete-nos para uma topologização da comunidade, a adequação de uma configuração popular com a capacidade de apropriação do espaço e de construção pelos moradores/as da Lomba.

É nesta relação dialética entre história e memória que se procede à renovação desta num tempo presente. Alguns autores como Ricoeur (1998:9-10) defendem que a criação de memória implica a responsabilidade de recordar. Um recordar que não se limita a um depósito de vestígios para uma leitura com sabor arqueológico, onde o passado não é mais do que um bibelot museográfico. Pelo contrário, o passado-vivido e presentificado no Bairro da Lomba deve ser valorizado, enquanto recurso coletivo, ao serviço dos seus moradores/as e da  cidade do Porto (Rodrigues, 2023).

É evidente que as comunidades-bairro não se reduzem apenas aos atributos descritivos materiais dos seus territórios e patrimónios edificados, mas estão também intrinsecamente conectados às relações sociais e simbólico-culturais da cidade (Silva et al., 2023, 2024). Neste processo de fabricar memória, reconhecemos na comunidade da Lomba uma das componentes da estrutura fundante da cidade do Porto. Será que estamos perante a impossibilidade de projetar narrativas históricas de valor coletivo? 

Embora não seja possível viver num espaço urbano neutro e sem memória, teremos de continuar a estar mundo nomeadamente urbano onde domina um regime comandado por processos de gentrificação por parte das elites e de deslocalização e  expropriação do direito ao lugar para os habitantes mais desprovidos da cidade?

O sistema político tende a estetizar os elementos que compõem e organizam a vida quotidiana, fenómeno que coincide com a generalização de estratégias de renovação estética, como a moda de enfeitar as ruas e as praças, as avenidas e os jardins da cidade. Também a cidade do Porto tem sido reconfigurada a partir de programas que  alegam renovar o espaço urbano e arquitetónico mas sempre numa lógica de apropriação de mais valia do trabalho e acumulação rentista imobiliária integrada num capitalismo de expropriação e vigilância ao serviço das classes dominantes e das elites urbanas com recursos para se instalar nos locais ditos nobres da cidade.

É à luz desta lógica que importa interpretar as palavras da apresentação do  novo programa sobre o Bairro da Lomba para instalar no seu miolo 47 habitações novas num valor de 7,7 milhões de euros, que dá cerca de 200 mil euros por unidade, valor que nos parece demasiado elevado, tendo em conta que nas casas da Ilha da Bela Vista o seu valor ficou entre os 16 e 26 mil euros para 37 unidades habitacionais e a construção do Bairro Dona Leonor as casas novas tiveram um custo médio entre os 50 e 60 mil euros para a construção de 77 unidades habitacionais distribuídas entre tipologias T1, T2, T3 e T4. 

Segundo informação disponível pode-se inferir que a Câmara Municipal do Porto (CMP) vai reabilitar 47 habitações, qualificadas através de um projeto dos arquitetos Maria Souto de Moura, Francisco Pina Cabral, Francisco Amoedo e Luís Vitorino Caleiro. O projeto prevê que o novo complexo habitacional disponha de 34 T1, 10 T2 e 3 T3. Facilmente constatamos várias contradições: por um lado, o Presidente da CMP fala em “reabilitar as ilhas da Lomba», mas no acordo assinado pelo Vereador de Urbanismo e Habitação Pedro Baganha e a Presidente do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), Isabel Martins Dias, fala de um projeto para um novo complexo habitacional. Passados estes meses, a CMP assume afinal de que se trata da demolição das ilhas da Lomba para aí colocar 47 novas habitações. Apresenta-se como justificação da demolição completa deste quarteirão histórico e de grande valor patrimonial o pseudoargumento de que as «ilhas não são viáveis» (cf. JN, 23/05/2024).

Apesar da promessa de reabilitação das ilhas operárias da Lomba e da visita à ilha da Bela Vista no sentido da reabilitação por parte do então candidato em 2013 e seguidamente Presidente da CMP, tal apenas teve lugar no que concerne a ilha da Bela Vista. Com efeito, esta  viria a ser reabilitada em 2017 em processo de arquitetura participada entre a Associação de Moradores, o Laboratório de Habitação Básica com a colaboração do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade do Minho, por um lado, e o Pelouro de Habitação da CMP, por outro, tendo então tido um papel decisivo os Vereadores Paulo Cunha e Manuel Correia Fernandes. Todavia, em relação ao Bairro da Lomba em que teria sido dado um sinal no quadro de um programa que teria subjacente os mesmos objetivos, tal não se verificou até hoje. Pelo contrário, acabamos por constatar, com o andar das obras, que afinal estamos perante um outro programa que arrasa as ilhas da Lomba, higieniza o bairro e faz tábua rasa de todo o quarteirão, destruindo ruas, vielas, logradouros e pátios interiores, pequenas hortas e jardins, nivelando e massificando a topografia do terreno. São assim destruídas topologias, verticalizações e relações geofísicas e topológicas que eram o garante da diversidade e complexidade patrimonial deste território urbano.

Este programa teve como principal coordenador o arquiteto Aitor Varea, segundo informação veiculada nas notícias dadas pela Presidência da CMP. Estamos perante uma proposta de programa que se traduz numa forma simplista e zonificada de traçar uma ideia de regeneração da cidade, aplicada num bairro histórico que merecia mais conhecimento, mais sensibilidade e valorização. Uma proposta escandalosa que propõe arrasar o espaço social das ilhas da Lomba, quando se afirma em textos e em entrevistas que se pretende reabilitar as ilhas.

Estamos perante a concepção do absurdo e do anacrónico em termos de proposta arquitetónica e um atentado do ponto de vista da intervenção em cascos antigos da cidade do Porto. Um projeto alegadamente moderno mas que arrasa o espaço histórico das ilhas da Lomba, uniformiza as topologias, destrói as relações espaciais em benefício de uma proposta marcada pela dita racionalidade moderna, mais preocupada com o objeto arquitetónico do que em consolidar e qualificar os interstícios e as morfologias das ilhas históricas do bairro operário da Lomba. Um projeto que ignora os princípios da Carta Mundial do Direito à Cidade, promovida pela UNESCO, subscrita pelo Estado português e propõe uma solução radical que passa pela destruição e demolição de toda a malha rica em conexões e relações. Uma proposta arquitetónica indiferente à conservação e reabilitação a partir do envolvimento e participação dos moradores/as e vizinhos/as. O projeto é o resultado do “modelito” que a Domus Social– Empresa Municipal de Habitação do Porto – tem promovido com a cumplicidade de alguns arquitetos e gabinetes de estudos sob a cobertura da Faculdade de Arquitetura e de Engenharia da Universidade do Porto.  Por outro lado, é importante anotar a retórica do presidente da CMP de que “as ilhas são lugares de memória da cidade, funcionam como espaços de interação comunitária e representam um modelo habitacional característico do Porto” (cf. Porto, 18/11/2022), verificando assim quão vazias e demagógicas se tornam  estas palavras.

Numa perspetiva do ‘direito à cidade’ parafraseando Henri Lefebvre (1968) e de pensar a cidade como lugar vicinal, não podemos aceitar que, em pleno século XXI, se apliquem as receitas do urbanismo moderno, arrasando um quarteirão em nome da “cidade do Futuro”, que na realidade nada mais é do que a ponta de uma nova frente de gentrificação urbana, associando-lhe os instrumentos da reabilitação ao serviço dos interesses imobiliários que se deslocam também para estas zonas mais populares.

Referências bibliográficas
Lefebvre, Henri (1968), Le droit a la ville. Paris: Anthropos.
Ricoeur, Paul (1998),La lectura del tiempo passado: memória y olvido. Madrid: Ediciones  UAM. 
Rodrigues, Fernando Matos Rodrigues; António Cerejeira Fontes; Fontes, André Cerejeira Fontes; Silva, Manuel Carlos (2023), “Cartografia socioespacial da Ilha da Bela Vista: uma proposta político-técnica de reabilitação por moradores, técnicos e cientistas sociais” in SILVA, M.C.; et al.(Orgs.) HABITAÇÃO É CENTRAL. São Paulo: Edição Terra Redonda, 209-230.
Silva, Manuel Carlos, Ribeiro, F.B; Rodrigues, F.M.; Baptista, L.V.; Fontes, A,C.;
Jorge, A.R. e Cardoso, A. (2023). Habitação e Habitat. ‘Ilhas’ e Bairros
Populares no Porto e em Braga. Vila Nova de Famalicão: Húmus.
Silva, Manuel Carlos; Rodrigues, F.M.; Ribeiro, F.B.; Cordeiro, J.L.; Jorge, A.R.;
Lopes, J. T. e Cardoso, A. (orgs) (2024), Bairros Populares no Porto e em
Braga: condições de vida, formas de habitação e representações sociais dos
moradores/as. Vila Nova de Famalicão: Húmus (no prelo).