O Matuto e o Isqueiro

Provinciano e deslumbrado, o Matuto continua a sonhar com o gesto de acender o isqueiro para uma mulher elegante e distinta.

matuto = diz-se de quem vive no mato e a quem falta traquejo social; caipira; matreiro.
O verbo matutar, significa meditar ou ponderar.

O Matuto acha-se um cavalheiro. À moda antiga. A ilustre directora da escola onde o Matuto trabalha, Dona Regina, costuma dizer: “He’s an English Lord”. Na memória afectiva do Matuto coabitam chapéus na cabeça e isqueiros para acender cigarros pendurados das mãos esguias das divas. Naturalmente, tudo desemboca nos filmes. O Matuto tem um carinho especial pelo Borsalino – filme icónico com Alain Delon e Jean-Paul Belmondo – onde o chapéu tipo Fedora era protagonista. Depois há Humphrey Bogart, em Casablanca e Ter ou Não Ter, incendiando a tela com o seu Zippo. O Matuto sempre teve visões de ser um cavaleiro andante de boa figura, esgrimindo o seu isqueiro, afogueando-se a ajudar damas em aflição. Um singelo isqueiro! Muito bem, adiante. Num vislumbre, o Matuto apercebe-se que o homem moderno substituiu o isqueiro pelo telemóvel (celular, no Brasil, por favor). Na verdade, o isqueiro é o único gadget que sobreviveu ao apetite voraz desses búzios tecnológicos que toda a gente manipula e bajula. O Matuto considera que o telemóvel assassinou relógios de pulso, lanternas, gravador, chaveiros, maletas executivas, telefones fixos, blocos de apontamentos, calculadoras, laptops, bips, a rádio, as cartas, agendas electrónicas, e-mails, streamings, redes sociais… Máquinas fotográficas então, foi um ar que lhes deu! Não houve Nikon nem Cannon ou Kodak que sobrevivesse para contar a história! Foram trucidados. Todavia, o singelo isqueiro resistiu – triunfa o Matuto.

Nesta arena moderna o Matuto é um outsider. Não tendo telemóvel, tem um isqueiro Honest. Um clássico. Provinciano e deslumbrado, o Matuto continua a sonhar com o gesto de acender o isqueiro para uma mulher elegante e distinta. Nesse gesto vai todo o referencial dum cavalheiro. À moda antiga. Másculo, porém sereno e suave. Cena linda. Na penumbra dum café – poderia ser em Casablanca – a chama do isqueiro do Matuto reflecte-se nos olhos da dama. Click-clack – o estalido do isqueiro. Bzuuummm – o gás na atmosfera. Os olhos pestanudos acendendo fogos internos no Matuto. Tskack-tskack – fechar e guardar o isqueiro faz parte do ritual. Uma flexão graciosa do pulso. Ok… adiante. O Matuto cai na real. Quem é que ele está a enganar? Hoje em dia, ganha pontos quem é mais sacana, cafajeste, canalha, pulha, patife, pífio. O mundo é dos malandros. Ah, um singelo isqueiro poderia mudar o mundo!

E eis que nas dobras do tempo o Matuto visitou a cidade de Tiradentes. Bem acompanhado de sua gentil esposa, Dona Sirlei. Esta cidade de Minas Gerais, antes chamada Vila de São José, foi renomeada em honra ao grande comerciante, minerador, militar e dentista. Tiradentes é reconhecido pelo Brasil inteiro por ter liderado a conspiração separatista denominada Inconfidência Mineira, contra o domínio Português. As autoridades descobriram a tramoia e prenderam e depois enforcaram o Tiradentes. O dia da execução – 21 de Abril, 1792– é feriado nacional no Brasil. A sua coragem está imortalizada no Livro de Aço, patente no Panteão da Pátria e da Liberdade, em Brasília, com traço de Oscar Niemeyer. Certo. E qual a ligação com a primeira parte deste artigo? O Matuto está senil? Calma, amigo leitor. Nada disso! Enquanto o Matuto visitava Tiradentes, e apertando o calor de Minas Gerais, ao ponto do Matuto se sentir a perder a presença de espírito, refugia-se numa sombra fresca… E, é quando o Matuto observa a imensidão de Mineiros fumando cigarros de palha. Aos magotes, de cigarro de palha nos lábios. O cigarro de palha é conhecido por ser mais artesanal e não convencional. O fumadores (fumantes, no Brasil, por favor) compram a palha e o tabaco separadamente, enrolando o cigarro pessoalmente. O homem da rua conhece-os por palheiros, ou pó ronca ou paiol. O Matuto está em condições de asseverar que os palheiros não têm filtro exibindo uma argolinha colorida a meio do corpo do cigarro para manter o conjunto todo unido. Da sua silhueta fresca, o Matuto observa velhos macerados, mulheres na azáfama diária, moços garbosos, homens de chinelos havaianas, teens de bermudinha, administrativos desengonçados, polícias no giro, carregadores, donas de loja… todos de palheiro entre os dedos. Em romaria, devotadamente, entram num boteco (tasca da esquina) de tinta a descascar, e saem esfumaçando deliciados o seu palheiro. O tráfico de palheiros murchos entre os dedos, que entram na tasca, é equivalente às fumaças azuis dos palheiros acesos, pós visita ao boteco da tinta escameada. O Matuto ficou curioso. Mistério. Enigma. Uma charada mineira. Pé ante pé o Matuto adentra o boteco. Corrupio normal de taberna. Cerveja nas mesas, a espuma dos copos, pedidos gritados, gestos de boa disposição, camaradagem, conversas no ar, risos, fofoquices… e então, a um canto pendurado dum cordel do balcão… o Matuto vê um isqueiro Bic. Um isqueiro! Os fumadores/fumantes chegam, click-clack – faz o isqueiro – e acendem o seu palheiro. Outro se chega, e o rotina repete-se. Click-clack – o isqueiro dá o seu miar metálico. O dono do boteco, indiferente à peregrinação de fumadores/fumantes continua na sua faina taberneira. Formidável. Um isqueiro comunitário! Para serviço das gentes de Tiradentes. Um singelo isqueiro! “Eu sabia que um isqueiro poderia mudar o mundo” – ponderou o Matuto.