Smartphone. O nosso segundo cérebro

O smartphone amplia as nossas capacidades, permite-nos chegar mais longe e mais depressa. Mas também tem o seu reverso. Sem ele ficamos perdidos e desorientados, não sabemos que horas são nem o que vestir, o que fazer ou para onde ir.

No tempo em que os animais falavam, quando alguém tinha de acordar cedo no dia seguinte marcava a hora do alarme no rádio-despertador pousado na mesa-de-cabeceira. Se tivesse de ir a algum lado e não dispusesse de carro próprio, dava corda aos sapatos ou ia até à paragem de autocarros mais próxima; no limite apanharia um táxi. Se tivesse de se lembrar de um compromisso, apontava-o na agenda. Se quisesse ouvir uma música, ligava o rádio ou punha um cd da bandeja do leitor. Se precisasse de comprar alguma coisa ia até à loja; e, se não precisasse mas quisesse apenas sonhar um pouco, deslocava-se até à zona do comércio para ver as montras. Em última análise, se sentisse fome, cortava uma fatia de pão e punha-a na torradeira – não pegava no telemóvel à procura de uma app que lhe trouxesse a comida à boca. O telejornal dava à hora certa e incluía o espaço do boletim meteorológico.

Antes da invenção dessa espécie de canivete suíço chamado smartphone, a vida fazia-se de uma multiplicidade de objetos com diferentes funções. Hoje, é ele que nos acorda de manhã para irmos para o trabalho; é ele que nos diz se temos compromissos ou mensagens; se vamos precisar ou não de gabardine e guarda-chuva.

Se tivermos carro próprio, indica-nos o melhor trajeto para o escritório, consoante o estado do trânsito; se não tivermos, é a partir dele que chamamos um Uber ou um Bolt. Se formos de autocarro, avisa-nos quanto tempo falta para passar o próximo.

Um escravo obediente sempre ao dispor O smartphone permite encomendar comida como José Mourinho, o treinador cujo rosto aparece em anúncios por todo o lado, e fazer compras “como um milionário” na Temu, na Amazon e no Ebay. Se antigamente íamos à Baixa ou à Rua de Santa Catarina ver as montras, hoje a montra está na palma da mão e basta deslizar um dedo pelo ecrã para desfilarem perante os nossos olhos produtos de todo o mundo e para todos os gostos.

O smartphone é despertador, agenda, termómetro e boletim meteorológico, câmara e álbum fotográfico, jornal, livro, televisão, aparelhagem hi-fi, centro comercial, restaurante e agência de viagens. Quer ver o resumo do jogo de ontem? O seu telefone tem. Quer saber a cotação do dólar ou das ações da EDP? Idem. Em resumo, o smartphone transforma-se naquilo que o seu dono quiser.

Por tudo isso, o aparelho funciona por um lado como um escravo obediente sempre ao nosso dispor, que não precisa de comer nem de beber, basta ligá-lo à tomada para carregar a bateria. Por outro lado, tornou-se uma espécie de segundo cérebro. É verdade que amplia as nossas capacidades, permite-nos chegar mais depressa e mais longe. Mas isso também tem o seu reverso. Sem ele, ainda conseguimos executar algumas funções básicas como respirar ou engolir. Mas ficamos perdidos e desorientados, não sabemos que horas são nem o que vestir, o que fazer ou para onde ir.

Por outras palavras: ao tornar-se indispensável, o smartphone fez com que nos tornássemos dependentes dele. E isso fica bem demonstrado pela atenção obsessiva, quase doentia, que lhe dedicamos.

A vida fora do ecrã luminoso Segundo o portal backlinko.com, a média diária global de uso do smartphone é de cerca de 4 horas e 20 minutos, 3 horas e 50 minutos das quais em ligação à internet (em 2014 era 1 hora e 38 minutos). A Indonésia é o país recordista, com os seus habitantes a passarem seis horas por dia a usar o telemóvel. Seguem-se a Tailândia, a Argentina, a Arábia Saudita e o Brasil (cinco horas). Portugal não foi contemplado no estudo, mas a média não deverá andar muito longe da da vizinha Espanha (um pouco mais de três horas e meia por dia). À medida que mais e mais funcionalidades se vão concentrando no pequeno aparelho, a tendência é para essa média aumentar.

Onde está o problema? Os ecrãs luminosos causam dependência e, segundo o neurocientista francês Michel Desmurget – autor de A Fábrica de Cretinos Digitais e, mais recentemente, de Ponham-nos a ler! A leitura como antídoto para cretinos digitais – pura e simplesmente estupidificam.

É verdade que a generalização do telemóvel poderia significar um regresso à palavra, uma vez que ele, como um livro, serve de suporte à escrita. Se o seu uso melhorasse as nossas competências literárias, os nossos jovens seriam todos Camões ou Fernando Pessoa. Claramente não é o caso.

Acontece que, além da escrita, os telemóveis servem de suporte a muitas outras coisas: imagens, sons, vídeos, música. E, entre um texto didático ou informativo e um vídeo do Tiktok de uma queda aparatosa, o vídeo ganha. “Estamos a criar uma geração de crianças que consegue fazer coisas simplistas, carregar num botão, comprar apps que um tipo de Google decidiu que vão ser tão fáceis de usar como uma escova de dentes”, resumia Desmurget em entrevista ao i em dezembro de 2021. “Mas depois falta-lhes o que faz de nós humanos, linguagem, conhecimento, cultura. A cultura é o que nos permite pensar no mundo”.

Enquanto os jovens, sobretudo, vão consumindo os seus dias a ver filmes de poucos segundos no tiktok e a jogar jogos aditivos como o Brawl Stars, há coisas a acontecer fora das quatro linhas do ecrã luminoso. Porém, como acontece com todas as verdadeiras dependências, tudo lhes parece um imenso vazio quando não têm o aparelhinho à mão. A sua vida resume-se àqueles poucos centímetros quadrados onde podem jogar, comprar, ver vídeos, trocar mensagens com os amigos. E esse é o derradeiro paradoxo: o telemóvel, que foi criado para comunicar, está a contribuir cada vez mais para isolar as pessoas naquele pequeno mundo alienante. Estamos muitas vezes disponíveis para falar com um desconhecido que se encontra nos antípodas; mas completamente ausentes para aqueles que se encontram mesmo à nossa frente.