Os brasileiros pelam-se por alcunhas. Se Edson Arantes do Nascimento foi Pelé e Manoel Francisco dos Santos foi Garrincha, Augusto Vieira de Oliveira foi Tite. Foram. Todos no passado, porque a senhora da gadanha não perdoa a ninguém e, neste momento, já jogam na planície da eterna saudade. Mas, ao mesmo tempo continuam a ser porque mesmo que muitos os esqueçam há sempre alguém que os recorde, nem que seja em linhas curtas de crónicas como esta. Tite jogou no Santos, com Pelé. E com Coutinho. E com Mengálvio, Dorval e Pepe. Aliás passou pelo Santos duas vezes, a primeira entre 1951 e 1958, a segunda entre 1959 e 1964. Desta última vez chegou contra a vontade dos adeptos. Tite não vinha para somar, diziam, não lhe perdoando a fuga intermédia para oCorinthians da vizinha São Paulo. Amargurado enfiou-se na escrita e na música. Publicou um livro: Futebol x Música –Minha História e Seus Detalhes. Não foi um sucesso. Nessa altura já poucos queriam saber de AugustoVieira de Oliveira. Ou, se calhar, nem reconheciam o nome assim por extenso. No relvado sempre fora oTite, era difícil tirar o apelido do relvado. Pois, apelido é como os brasileiros chamam à alcunha.
No dia 26 de agosto de 2004, estão quase a cumprir-se 20 anos, Tite entregou a alma ao Criador. (Chamam-lhe Criador, assim mesmo com maiúscula, mas afinal também é Destruidor, igualmente com maiúscula).Para trás ficava a juventude no Campos dos Goytacazes, cidade de petróleo no Estado do Rio de Janeiro, quando seguiu as pisadas de um tio que também vestira a camisola azul e branca do Goytacaz Futebol Clube, ele que, por sua vez, foi tio de outro jogador, o lateral-esquerdo Léo que jogou no Santos e veio para oBenfica. Eduardo Bueno, um historiador brasileiro, afirmava que os goytacazes eram uma das tribos de índios mais ferozes de toda a América do Sul. Mas Tite nunca foi feroz. Era um bailarino, escorregadio como Nijinsky, tinha pés de algodão nos passes longos e milimétricos e uma biqueira de aço para os pontapés certeiros que assustavam os guarda-redes, apavorados como se estivessem frente a frente com um perigoso ostrogodo.
Em 1947, com apenas 17 anos, chegou ao Fluminense. E encarou-se com um problema irresolúvel. Era demasiado jovem para tirar o lugar aos dois jogadores que jogavam na sua posição.Um deles era Telê Santana. O outro eraJoaquim Albino, a quem chamavam o Quincas, tal e qual o personagem de Jorge Amado em A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água, protagonista daquela passagem maravilhosa em que pensa que está a emborcar um copo de cachaça e de repente descobre que foi enganado berrando: «Áááááágua!».
Quando chegou ao Santos pela primeira vez tinha vinte anos. Ainda era um menino numa equipa que viu dois meninos estrearem-se antes de fazerem 17, Pelé e Coutinho. O seu pé esquerdo era encantador, os olhos da multidão fixavam-se nele à espera do momento mágico em que o coelho sairia da cartola e daria o golo a um companheiro ou o faria ele próprio, mas o lado esquerdo tinha dono, era de José Macia, a quem chamavam de Pepe. Impaciente, Augusto disfarçava nas cordas do violão. Carregava com o instrumento para todo o lado, inclusive para os estágios da equipa do Santos. Tocava bem e era contra os estágios. Embirrava com os treinadores. Concentração? Concentração para quê? Ele vivia concentrado. No futebol e na música. Preferia ser deixado solto para poder ir com os amigos tocar em bares de chorinho. «Tenho medo da verdade/Por isso vivo de ilusão/Porque a realidade/Pode ferir meu coração», cantava acompanhado por Viviani e Seu Conjunto. «Com a ilusão que ela me espera/Como a flor da Primavera/Tão perfeita no jardim/Com a minha cobardia/Nem em paz tenho alegria/Que fazer/Eu sou assim». O título era, como está bem de ver, Eu Sou Assim. E o assim de Tite ia ficando cada vez mais triste e mais distante do futebol e cada vez mais perto da melancolia. Ora, dentro do campo não pode haver local para gente que sofre daquele ‘spleen’ de que falavaBaudelaire. Aos 33 anos, Augusto Vieira de Oliveira decidiu que nunca mais calçaria um par de chuteiras, por muito imortais que fossem. «Perdi meu amor/Fiquei sozinho/No meu caminho/Perdi meu amor/E quero morrer…». Talvez dramatizasse. Se o amor perdido era o da bola, não se pode dizer que tenha perdido grande coisa tal o menoscabo com que os torcedores o tratavam. Pelé orgulhava-se de ter aprendido a tocar violão com Tite, o que não é propriamente um elogio ao professor. Pelé jogava como ninguém, mas tocava mal e a sua vida na música nem deu para um rodapé. Tite ainda está por aí, em discos de vinil. Negros como a sua tristeza íntima.