O paradoxo de Camões

A odisseia de Luís de Camões pelo Oriente ficou marcada a ferro quente por sucessivos infortúnios. Como pôde ele cantar com tanto entusiasmo as navegações?

Ao longo das últimas semanas dediquei aqui cinco crónicas a Camões e a Os Lusíadas, uma por cada século decorrido desde o nascimento do poeta em 1524. No primeiro desses textos, falei sobre a surpresa que constituiu para mim o comentário do inquisidor encarregado de analisar o livro, Frey Bertholameu Ferreira: «Não achei neles coisa alguma escandalosa, nem contrária à fé e bons costumes». É de se lhe tirar o chapéu!

Depois, falei da grandeza e miséria de Camões, da música da guerra n’Os Lusíadas, das tremendas descrições dos tormentos sofridos pelos navegadores e, por fim, do prémio que aguarda o Gama e os seus homens, mas também o leitor.

Mas creio que ainda ficou qualquer coisa por dizer. Ficará sempre.

Para começar, parece-me espantoso que o grande poema épico celebre a descoberta do caminho marítimo para a Índia, quando, noutro lugar, Camões disse o pior daquelas paragens: «Da terra vos sei dizer que é mãe de vilões ruins e madrasta de homens honrados. Porque os que cá se lançam a buscar dinheiro sempre se sustentam sobre água como bexigas…».

De resto, também é significativo que toda a gesta dos Descobrimentos, cantada n’Os Lusíadas, tenha começado com a conquista de Ceuta, provavelmente um lugar de má memória para Camões, que talvez ali tenha perdido um olho.

De outras terras mais longínquas, o poeta não teria ficado com melhores recordações. Quando era provedor dos bens dos defuntos em Macau, acabou por ver-se acusado de desviar dinheiro que não lhe pertencia. Depois, na viagem de regresso, perdeu todos os seus pertences – exceptuando a preciosa obra, ainda incompleta – e quase perdeu também a vida num naufrágio no rio Mecom (ou Mekong).

Como se não bastasse, de volta a Goa, terá estado preso por mais de uma vez (como aliás já tinha estado em Lisboa antes do degredo para a Índia). Em suma: a odisseia de Camões pelo Oriente ficou marcada a ferro quente por sucessivos infortúnios. Como pôde ele cantar com tanto entusiasmo as navegações?

Outro aspeto que causa alguma perplexidade n’Os Lusíadas – e aqui regressamos ao veredicto do inquisidor – é como pode alguém que supostamente pretende celebrar a expansão da fé cristã construir toda a sua obra em torno do mundo clássico e dos deuses pagãos. Apercebi-me disso com flagrante nitidez quando encontrei na estância 43 do Canto X uma referência à «Egípcia santa Catarina». Antes disso, que eu me desse conta, não houve quaisquer menções a santos, como seria natural numa obra de um autor cristão. O poeta pura e simplesmente substituiu-os por heróis da Antiguidade e personagens da mitologia grega.

Enquanto andou por terras estranhas, dizia eu, Camões sofreu a bom sofrer. E ao contrário dos homens do seu poema, que tiraram a barriga de misérias na Ilha dos Amores, o autor nunca recebeu a devida recompensa pelos seus esforços. Pelo menos material. De regresso à pátria, a sua situação não melhorou nem um pouco: continuou pobre e pobre morreu. Esse é talvez o derradeiro paradoxo d’Os Lusíadas. Camões pôs Portugal e os portugueses nos píncaros, mas talvez não tivesse grandes razões para isso. Ofacto é que em vida foi terrivelmente maltratado por eles.