HAMBURGO – Não sei se o medo se mede em quilos se em litros, mas estava sentado na sala de imprensa deste estádio que fica no meio do Parque do Povo, a ver se os brutamontes alemães conseguiam levar a melhor sobre a arte dos espanhóis, quando pensei: se frente à Eslovénia nos custou tanto tomar uma posição de coragem como iria agora acontecer face à França que, é bom não esquecer, esteve nas duas últimas finais do Campeonato do Mundo? Pelo menos em relação ao onze estava disposto a apostar, dobrado contra singelo, como nos livros do Texas Jack, que ele iria ser o mesmo, isto é, aquele em que Roberto Martinez de facto confia, pois não pareceu até agora ter vontade de querer ensaiar outras soluções e quando o fez foi o desastre que se sabe. Por seu lado, Didier Deshamps também resolveu meter três ferrolhos no meio campo, Tchouaméni, Camavinga e Kanté, numa clara tentativa de muscular a sua equipa. Havia medo também vestido de branco e azul.
O jogo começou animado, alegre, não nos encolhemos mas também não aceitámos o ritmo que os franceses pareciam querer imprimir-lhe nos primeiros movimentos. Gostamos de ter a bola e tivemo-la. Isto é, eles que nos viessem tirá-la. Reconheça-se que até fomos muito mais atrevidos do que nos quatro desafios até aqui. Tal como tem sido prática, foi através de Leão que começámos a criar embaraços ao adversário, apesar de ter sido Diogo Costa a fazer a primeira e a segunda defesas complicadas. A França parecia, por seu lado, estar à vontade com a nosso adiantamento no campo. Aliás, um dos segredos das equipas habituadas a ganhar é a paciência. Se era um jogo de nervos, para eles não parecia. Com Vitinha desta vez mais recuado em relação a Bruno Fernandes restava saber que perigo viria do «sprinter» Mbappé para uma defesa que dava uns passos à frente em direção ao meio-campo. Chegamos ao intervalo com menos dúvidas mas também sem grandes certezas. A seleção nacional, em relação ao que se vira anteriormente, estava a jogar um futebol mais digno, menos amarrado às anteriores incompreensíveis vicissitudes (até vimos Bruno Fernandes marcar um livro direto), em espaços mais próximos da baliza contrária, mas as oportunidades de golo tinham sido nenhumas. Era fundamental agredir a defesa francesa e não o fazíamos. Tudo estava em aberto e não deixava de ser uma boa notícia. Havia falta ainda daquele velho grito de guerra: «Por Santiago!»
Os cadernos do medo
Vamos para a segunda parte com a noção de que era preciso mais qualquer coisa para definirmos o jogo a nosso favor. Percebia-se que a França ia deixar correr o marfim à espera de um momento em que pudesse dar uma machadada nas nossas ambições e não podíamos ficar por ali como aquele inglês que dizia: «Um destes dias vamos passar a guiar pela direita mas tem de ser a pouco e pouco». Se Roberto Martinez é, por natureza, avesso a riscos, era altura para contrariar a sua natureza. Aproximar mais Berrnardo Silva de Ronaldo, por exemplo, para que pudéssemos vê-lo fora do exílio do lado esquerdo. O problema é que, cansada de esperar, a França fez-se à vida. Se durante 45 minutos se tinha mantido no jogo das cordas, aguentando os murros relativamente suaves do opositor, agora decidira chegar-se à frente. Continua a ser Leão, ele teimosamente, a esticar um jogo ainda curto. Parecemos só querer guiar pela esquerda quando, finalmente, aos 60 minutos, pela direita, Bruno Fernandes obriga Maignan a mexer-se. Logo a seguir, Vitinha tem a melhor oportunidade do jogo. Responde Colo com um quase golo. A substituição de Griezmann por Dembélé é significativa. Deschamps acredita que fará o desequilíbrio pela velocidade. Parece ter razão. Estão decorridos 70 minutos e Camavinga falha a baliza portuguesa por milímetros. Será por milímetros que o jogo vai ser decidido? Nuno Mendes começa a sofrer vagas de ataques pelo seu lado e Leão é obrigado a recuar. Portugal passa mal como nunca até aí e o selecionador nacional mexe na equipa tirando Cancelo e Bruno Fernandes para entrarem Nelson Semedo e Francisco Conceição. Estamos com 74 minutos cumpridos e Bernardo Silva fixa-se no meio. Temos todo o lado direito renovado. Parece haver a intenção de começar a dividir os focos do ataque português e a França está cada vez mais convencida de que a expectativa joga a seu favor. Os adeptos clamam por Giroud mas este não está a ser jogo para ele. Como a maior posse de bola não nos garantiu perigo acrescido, não há maneira de lhes recusar razão. Thuran entra para refrescar o seu ataque e o prolongamento é cada vez mais inevitável e Martinez faz a mudança esperada: Palhinha por Ruben Neves.
Revemos o que se passou e voltamos a ter de abrir os cadernos do medo para explicar o zero-zero. De um lado e do outro o risco reduziu-se ao mínimo denominador comum. Convenhamos que tanto futebol arredondado nos faz parecer inofensivos. Afinal quem vai querer fugir às grandes penalidades? Dir-se-ia que mais a França do que Portugal, tendo em conta os recentes acontecimentos. Fofana vai fazer o lugar de Camavinga. Ronaldo tem o golo no pé direito mas a bola sai direita ao céu escuro de Hamburgo. Os franceses precisam de espaço para correrem mas não o encontram; os portugueses guardam a bola como se dela dependesse a sua sobrevivência neste Campeonato da Europa. Se calhar depende mesmo. Esforçam-se mas não apresentam soluções, tal como no desafio com a Eslovénia. Que a França não tem golo já sabíamos. Nervos à flor da pelo no relvado mas quem está fora dele, observando o que se passa procurando ser objetivo, não pode deixar de se envolver numa estapafúrdia monotonia e irritar-se com tamanha falta de coragem de um lado e do outro. Sai Mbappé e sai Leão. Virão Barcola e João Félix para a decisão definitiva dos pontapés de penalti? E Matheus Nunes? Exige-se mais de uns quartos-de-final de um Europeu. Alguém que faça qualquer coisa! E ninguém faz. Alguém que diga qualquer coisa! E ninguém diz. Ainda Nuno Mendes no fim das forças e que Diogo Costa que seja herói outra vez…
Os adeptos portugueses festejam. Verão de perto os remates e as defesas que se seguem. Mas não há defesas, apenas o pontapé ao poste de Félix. Portugal regressa a casa, triste, triste como um fado por cantar. Qualquer coisa continua a faltar-nos para sermos grandes. Qualquer coisa que parecia estar ao nosso alcance e não esteve. Qualquer coisa que por mais que queira nunca conseguirei explicar.