Habituámos-nos a ver a Europa como o centro do mundo. Não que a Europa de então não tenha já sido o centro do mundo. Que o foi para o bem e para o mal. Em boa verdade a Europa, ou melhor os Estados e povos deste continente, cognominado desde muito cedo de «velho continente», foram contribuindo ao longo da história mundial para o desenvolvimento do planeta nos mais importantes domínios. Tal como muitos outros povos, naturalmente. Uma Europa também ela ligada aos seus dramatismos e incoerências que a história facilmente demonstra. Também entre nós europeus, nos dias de hoje, o conceito, os princípios e a vivência da democracia e sagração da liberdade vividas em muitas décadas recentes, têm permitido ao continente europeu ser um espaço de referência. E igualmente de modo concreto, no desenvolvimento dos seus povos, no desígnio da igualdade e até mesmo de garantia da paz. O primeiro dos continentes também nos objetivos determinantes da sustentabilidade energética e ambiental e no combate às alterações climáticas A União Europeia é por tudo isso um modelo amplamente reconhecido, baseado num projeto político único a nível mundial, onde o desenvolvimento social e económico são uma pedra angular do compromisso dos seus Estados-Membros.
As eleições a realizar este fim de semana na França já na segunda volta, após a vitória do partido trabalhista nas eleições do Reino Unido, a par da escolha política dos dirigentes da União para os próximos anos e de outras escolhas eleitorais já entretanto efetuadas ou ainda a serem realizadas proximamente em outros Estados, deveriam representar apenas e tão só, eleições importantes nas respetivas escolhas políticas em democracia.
O amplo espaço democrático que usufruímos hoje, permite com naturalidade num modelo de livre opinião e de debate alargado, a possibilidade de permitir uma confrontação salutar de ideias e projetos. Ou seja a tradução de modelos diferenciados que refletem a própria diversidade dos Estados europeus e constituem o reflexo inalienável das suas próprias especificidades e interesses.
Existe contudo hoje um foco de elevada tensão política e social. A preocupação geral assumida em algumas destas eleições, releva do facto de que as atuais eleições em muitos dos Estados da Europa se inserem num ambiente de acentuado reforço de partidos e de ideias de extrema-direita. Este crescendo de receios acentuou-se mais ainda em França, um país que nos habituou desde sempre nos valores da democracia e da liberdade. Um Estado absolutamente decisivo para a continuidade do projeto europeu, tal como este foi idealizado pelos pais fundadores da Europa. Sem a presença destacada da França e da Alemanha, certamente que não existiria União Europeia, tal como a percecionamos.
A França surge assim dividida entre blocos e conceitos extremos, no qual o centro-esquerda e o centro-direita deixaram de representar ou de aparentemente interessar à maioria da sociedade francesa. As políticas dos extremos à direita, mas também à esquerda, questionam intrinsecamente o modelo da atual Europa, as relações com Estados Unidos e a própria política de segurança e defesa adotada. Provavelmente também em modo de surdina tática, a contextualização do existente espaço de democracia.
Tudo isto num momento em que a guerra na Ucrânia e o conflito no Médio Oriente têm igualmente contribuído para dividir cada vez mais a Europa. A geopolítica e a geoestratégia são fatores integrantes e essenciais no âmbito das estratégias políticas a definir, quer dos Estados democráticos quer dos autocratas ou até mesmo dos regimes de ditadura. Mas estes modelos do sistema internacional interferem e condicionam de maneira mais efetiva as democracias. Pela maior necessidade destas agregarem projetos diferenciados, da necessidade de conciliar e debater ideias e de alternarem com novos sistemas estruturantes de cooperação.
O conflito da Palestina e a guerra em Gaza continuam a crispar os países europeus, como sempre aconteceu na sua história. As principais linhas da discussão e do embate político em França, cruzam-se estranhamente neste domínio em concreto, com os movimentos políticos dos extremos a justificarem alinhamentos de motivação solidária ou de política internacional identitária. Mas onde sobressaem muitas vezes, atitudes de racismo e de antissemitismo, ou de confrontação com os Estados Unidos e o Ocidente, em consonância objetiva com as estratégias e outras ambições geopolíticas regionais de outros atores internacionais fora do espaço europeu.
Por sua vez os desígnios de Vladimir Putin e as suas ações imperialistas primeiro na Ucrânia e depois as ameaças ao Ocidente em geral, vão com o tempo gerando um fator de adormecimento na sociedade europeia, o qual pode tornar muito difícil o combate da própria Ucrânia pelo seu direito à soberania e integridade como Estado independente. Tudo isto dependerá muito e em modo decisivo do que resultar nas eleições de novembro nos Estados Unidos, também elas angustiantes para o espaço democrático, após o recente debate entre os dois candidatos.
As eleições em França fazem-nos assim pressentir o perigo de que possam surgir de novo e em contra-mão, os motivos e as ideias do passado, fazendo perigar a democracia e a liberdade, princípios que o projeto europeu sempre ergueu como sua bandeira. As novas lideranças da União e da NATO precisam de mostrar uma especial firmeza face aos múltiplos desafios colocados pelos inimigos da democracia e da liberdade. São muito evidentes os interesses geopolíticos patenteados pelas potências mundiais ou regionais como a Rússia, China e até mesmo o Irão e os seus aliados regionais no Médio Oriente. Também estas potências de uma ou outra forma se declaram agora o centro do mundo «global» e de uma nova ordem internacional.
O ano de 2025 terá tudo para não ser um ano fácil para a democracia e a liberdade. Mesmo que fora de qualquer “centro do mundo.”