Fausto Bordalo Dias. Extinguiu-se a voz que nos ajudou a digerir a nossa História

1948-2024 . O compositor e cantor morreu aos 75 anos vítima de doença prolongada.

É preciso subir a grande custo o rio da memória de modo a sentirmos a agitação daqueles dias que estavam empenhados em levar mais longe a linguagem e o sentido. O tempo dos trovadores aliava um encanto sabedor, enriquecido pelas tradições, a esse ímpeto desbravador que é próprio do lirismo, ganhando embalo no passado para se empenhar num esforço de renovação, num compromisso com o futuro. Se a música não perdeu o travo desafiador, quase tudo o que se vai dizendo já não obriga quem ouve canção a ter um estômago para a digestão. Evidentemente, os homens não melhoraram, e matam-se como percevejos, como já notara Drummond. «Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado./ E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.» Alguns lembraram-se de como se chorava ao ouvir a notícia da morte de Fausto, na segunda-feira, aos 75 anos. Afinal, a sua voz veio a construir esse lugar profundo onde o mar se escondeu mimando os restos daquilo que foi em tempos a nossa identidade. Um dos nomes decisivos da canção de intervenção, e, sobretudo, alguém que nos ensinou a lidar com a pesada herança do nosso passado, sem temor nem reverência, Fausto deu-nos essa voz cantada de um narrador que parecia saber quem fomos. A voz de Fausto Bordalo Dias tinha essa humidade viva, esse rigor donde as ondas saem mais calmas ou rudes, sabendo responder às iras do vento como só o mar, que as absorve e delas faz um sentido, descobrindo «o fundo nunca descoberto/ As areias ali de prata fina». A tradição fez-lhe o ouvido, fez-lhe aquela apreciação pela leveza dolorosa que os homens aprenderam à sua custa, apropriando os seus gestos mais duros, mais pesados com uma graça e elegância que é própria da experiência, da proximidade com a vida e com o mundo.

Como assinala o Avante!, «o Fausto Bordalo Dias cantou-nos (e contou-nos) sempre como mais nos fazia falta. Do namoro à reivindicação, a explicar como tinha que se fazer ou a contar a História do que foi; sempre do lado do povo, na certeza de que ‘outros tempos hão-de vir’./ Cantou-nos sempre de forma exemplar, trabalhando a própria criação popular em arranjos como o da Carvalhesa, que graças em boa medida ao seu talento e do pequeno grupo de músicos e técnicos portugueses que com ele trabalharam, continua a ser tão portuguesa como sempre o foi, e a despertar de forma viva e entusiástica a alegria e a confiança no futuro que a sua audição pública continua sempre a comprovar».

Ele que não se via como poeta, e que nem gostava de viajar, tem um grande trabalho a estabelecer ligações, pontes, e é impossível não reconhecer o génio na forma como vertia elementos entre o som e o ritmo, a palavra, a música, compositor nesse sentido mais exigente, dizendo os movimentos mais antigos e vastos, tendo retido a lição do mundo, desses seres a quem tudo fala, de tal modo que o vento lhes leva a voz que a ele deitaram. «Quem conhece a obra de Fausto Bordalo Dias, sabe ao que vem. São milhares de horas de dedicação e estudo intenso, de criação febril, de pausas sem tréguas ao pensamento», notava Nuno Pacheco, numa reportagem feita em 2010, quando assomava o terceiro tomo da sua trilogia das Descobertas (Por este Rio Acima, Crónicas da Terra Ardente e Em Busca das Montanhas Azuis), e se ensaiava a apresentação ao público, no CCB. Era seu entendimento que a diáspora portuguesa persistia ainda, contando tudo, sem se dar a devaneios exaltantes, mas recriando eximiamente o fio da história, de modo a que este possa ser um alimento da memória. Não se tratava, por isso, de contribuir para o engrandecimento de uma visão mítica, mas para estabelecer uma ligação esclarecedora com o nosso presente, como ele tornou claro numa entrevista dada ao Expresso, em novembro de 2011: «Encostado aos cenários da História, eu falo do presente. Como hoje continuam fenómenos da escravatura, da guerra, das lutas tribais, da exploração, da incompreensão do outro ou da cooperação entre os povos. O meu trabalho não se quer passadista».

Nascido em 1948, a bordo do navio Pátria, numa viagem entre Portugal e Angola, país onde viria a formar a sua primeira banda, Fausto estreou-se em nome próprio com a edição de um álbum homónimo em 1970, embora o próprio preferisse entender P’ro Que Der e Vier, edição da Orfeu datada de 1974, como o arranque oficial da sua discografia. Lançou trabalhos marcantes para o moderno cancioneiro português como Madrugada dos Trapeiros, de 1977, Histórias de Viageiros, em 1979, e, sobretudo, Por Este Rio Acima, trabalho de 1984 amplamente considerado como um dos melhores trabalhos de sempre da música popular portuguesa. Como assinalou a Casa da Música, aquela que se constituiu como a trilogia fundamental da música portuguesa, iniciada com o LP duplo Por Este Rio Acima e inspirada nos relatos da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, «surpreendeu com impressionantes rasgos de imaginação e lirismo, criando uma fusão invulgarmente consistente da tradição musical oral portuguesa com elementos contemporâneos, muitos deles remetendo para outros espaços e culturas, como as terras por onde Portugal passou, e sem pruridos em colocar no mesmo quadro as conquistas aventureiras e as marcas mais sangrentas da expansão portuguesa».

Entre as homenagens que se foram multiplicando após ser conhecida a notícia da sua morte, merece destaque a de Amélia Muge, que partilhou palcos e estúdios com Fausto, e que reconheceu a sua dúvida em termos que mais tarde ou mais cedo deveriam abranger todos nós: «Quando o escutamos, tem essa dimensão de nos ajudar na descoberta de quem somos, do que foi a música ontem, do que é hoje e do que, eventualmente, continuará a ser».