Ambicionando há muito ser presidente do Conselho Europeu, o então primeiro-ministro António Costa tinha uma complicadíssima bota para descalçar. Considerando que os socialistas haviam criticado duramente a ‘deserção’ de Durão Barroso para Bruxelas quando foi presidir à Comissão Europeia, abandonando a chefia do Executivo, como iria Costa explicar aos seus correligionários a mesma atitude? Não havia grande saída.
Foi por isso que, após a demissão de António Costa do Governo, um conhecido comentador político me disse em conversa privada: «Ele demitiu-se para se candidatar à presidência do Conselho Europeu. António Costa é muito apreciado na União Europeia, e parece talhado para aquele lugar. É um cargo que exige negociação, capacidade de gerar consensos, tudo o que ele sabe fazer bem».
Como sou pouco dado a teorias da conspiração, a ideia não me convenceu inteiramente.
Tudo poderia não passar de uma coincidência, como há muitas na política.
Agora, concluo que o meu amigo comentador estava cheio de razão.
Os factos encaixam como uma luva na sua tese.
Primeira questão: Como explicar a rápida demissão de António Costa logo que foi divulgado o comunicado da Procuradoria-Geral da República sobre o processo Influencer?
Como é que um homem que se agarrara tanto ao lugar em diversas ocasiões – lembrem-se o incêndio de Pedrógão ou o roubo de Tancos, em que Costa se demarcou totalmente de responsabilidades, atirando todas as culpas para cima de Constança Urbano de Sousa e de Azeredo Lopes –, mostrou tanta pressa em demitir-se?
Não seria natural que esperasse algum tempo?
Como é que um homem que tinha resistido tanto à demissão de João Galamba, em circunstâncias muito mais gravosas, renunciou tão rapidamente ao cargo?
Essa rapidez foi intrigante.
E a justificação apresentada («defender a dignidade da função») foi chocha.
Tratou-se evidentemente de uma frase ‘para português ver’.
Segunda questão:
Por que é que, ao anunciar a demissão, António Costa não deixou nenhuma porta aberta para voltar atrás?
Por que é que, pelo contrário, deu um passo à frente e apresentou o nome de Mário Centeno para o substituir no Governo?
E por que é que os seus próximos não fizeram nenhuma tentativa para o demover nem criticaram Marcelo Rebelo de Sousa pela prontidão com que aceitou a renúncia? Criticaram-no, sim, mas por recusar o nome de Centeno para primeiro-ministro e por ter decidido dissolver o Parlamento.
Terceira questão:
Como entender os rasgados elogios de António Costa a Pedro Nuno Santos, desde que este se apresentou como candidato a seu sucessor?
Os dois nunca se tinham dado bem.
Toda a gente sabia que Pedro Nuno Santos criticava Costa, e que só esperava uma oportunidade para lhe tirar o tapete.
Por que é que António Costa passou a elogiá-lo tão abertamente?
Agora, tudo está explicado. António Costa apressou-se a pedir a demissão, porque queria mesmo ver-se livre do Governo para poder ir para Bruxelas. António Costa apresentou Centeno como seu substituto porque não queria ficar com o ónus de ter deixado o cargo vazio.
Os apoiantes de António Costa não fizeram pressão para ele voltar atrás porque conheciam as suas intenções.
António Costa incentivou Pedro Nuno Santos porque este, ao candidatar-se à liderança do PS, viraria a página no partido – que passaria a concentrar-se nas eleições internas e deixaria para trás, sem discussão, a demissão de Costa.
O processo Influencer – e o célebre parágrafo que falava da investigação ao primeiro-ministro – deu, pois, a António Costa a saída airosa de que precisava.
E todos os seus passos subsequentes foram no sentido de que não se refletisse sobre o seu gesto nem se questionasse a sua atitude.
Não vou ao ponto de dizer que foi Costa quem ‘inspirou’ esse parágrafo, nem nenhum magistrado se sujeitaria a isso.
Mas de uma coisa não há dúvida: António Costa agarrou-o com as duas mãos.
Era a oportunidade de passar de possível ‘desertor’ a ‘vítima’.
De eventual fugitivo ao cargo, a vítima da Justiça.
O lobo mau da história passaria a não ser ele mas a PGR, ao lançar sobre ele a suspeita.
E Marcelo Rebelo de Sousa surgiria como cúmplice no processo, por ter dissolvido o Parlamento.
Todos conhecemos o maquiavelismo de António Costa. A forma como afastou António José Seguro da liderança do PS, e depois como se tornou primeiro-ministro tendo perdido as eleições, foram provas eloquentes disso mesmo. Como é que um homem assim largaria tão facilmente o cargo de chefe do Governo se não fosse pela perspetiva de outro mais importante? Hoje está tudo claro. Até mesmo a ingenuidade de alguns socialistas que atacaram a Procuradoria-Geral da República e insultaram Lucília Gago, não percebendo que o Influencer e o famoso parágrafo era a tábua de salvação de que o líder precisava para sair airosamente de S. Bento.
Santa crendice!