matuto = diz-se de quem vive no mato e a quem falta traquejo social; caipira; matreiro.
O verbo matutar, significa meditar ou ponderar.
O Matuto risca um pouco de Inglês. E até finge tão perfeitamente a sua sapiência que dá umas aulitas do dito. Numa dessas aulas estava o Matuto sereno e tranquilo, enquanto os pupilos se dedicavam a um teste rotineiro (prova, no Brasil, por favor). De repente, no silêncio reinante, ouve-se: “Shit, teacher! Shit!” O Matuto abespinhou-se. Não era caso para tal arroubo de grosseria. Vai daí, e após breves investigações, o Matuto entendeu que o aluno desejava uma “sheet’ (folha!) para registar (registrar, no Brasil, por favor) as suas respostas. O Sr. Rocha, ex engenheiro mecânico tornado especialista nos fonemas anglófonos, diria que a língua em “shit” fica embaixo do palato numa posição frontal, enquanto que em “sheet’ ela fica suspensa numa posição central. Ultrapassadas as armadilhas do tipo de não anteporem os adjectivos aos substantivos, e evitando os false friends – dizer I pretend quando querem dizer I intend – estes alunos já vão em dilemas mais complexos da fonética do idioma de Sua Majestade, o rei Charles III. Porque, na verdade, vira e mexe o Inglês é uma coisa escanifobética.
Ariano Suassuna (1927-2014), dramaturgo e intelectual Brasileiro, costumava dizer que o Inglês é absurdo. O Matuto assistiu a um vídeo engraçado em que Suassuna pegava num copo de plástico e afirmava: “qualquer analfabeto diz que isto é um copo. Em Inglês não é assim. É glass. Mas glass também é vidro. Então, isto é, um glass of plastic. E, se o copo for de vidro é um glass of glass. Isso lá é língua!” E, Suassuna tem uma certa razão. O Matuto está em condições de assegurar que certos estudiosos garantem ter o Inglês 60% de palavras que têm duplo ou triplo sentido. Muito bem, adiante! Se o amigo leitor, chegou até aqui, fique mais um pouco. A melhor parte vem aí!
Estava o Matuto nestas considerações insofismáveis quando topou com uma crónica encantadora de Rubem Braga, chamada “Aula de Inglês”. Eis uma transcrição editada:
– Is this an elephant?
Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto. Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil. Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convictamente:
– No, it’s not!
Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente me perguntou:
– Is it a book?
Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro à primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras. Aquilo não era um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:
– No, it’s not!
Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita – mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.
– Is it a handkerchief?
Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca… Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe ou relógio de pulso, ou ainda, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:
– No, it’s not!
Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief. Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação. Não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca já tinha a certeza de ser uma pergunta decisiva.
– Is it an ashtray?
Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ashtray: um ashtray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ashtray. Sim. Era um objeto de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento. As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas – duas ou três – na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado e cinzas esparsas, além de um palito de fósforo já riscado. Respondi:
– Yes!
O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por uma onda de alegria; os olhos brilhavam – vitória! vitória! Ergueu-se um pouco da cadeira ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:
– Very well! Very well!
Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou… (In Jornal do Brasil – Maio, 1945)
Ora, o Matuto admira o empenho no estudo do Inglês. Na cidade do interior do Estado de São Paulo que acolheu gentilmente o Matuto no seu seio, essa dedicação é visível. E esse entusiasmo já vem de ilustres cronistas de outros tempos. Essa coisa, de só ler em Português e de só comer ou beber productos nacionais, é uma santa burrice – pondera o Matuto. Abaixo a Coca-cola! Viva a caipirinha! Isso são lérias – respiga o Matuto. Integração linguística é essencial. Não significa subserviência nem imitação. Integração – reitera o Matuto. Devemos aprender com quem tem 2000 anos de tradição cultural, bibliotecas, arquitectura, música, pintura, filosofia, teologia – declara o Matuto. O Inglês é essencial – assevera o Matuto. Senão, voltaremos a habitar em árvores, fazendo exercícios em lianas – Me Tarzan! You Jane! – e a tomar banho nos rios junto com os jacarés. E voltaremos a grunhir, em vez de falarmos – avisa o Matuto.