MUNIQUE – Munique outra vez, como no primeiro dia, e caminhamos irreversível para o último. Munique com a França no caminho da Espanha e sem Portugal que, mais uma vez, se fica pelos quartos-de-final, vendo bem o seu lugar neste palco onde só sobrevivem os mais capazes, os mais fortes, os mais agressivos e os capazes de ferir os adversários em vez de só afagá-los com um jogo redondo e de balizas ausentes. Regressou a Lisboa a seleção de todos os culpados, cada crítico afiando a faca para escolher o seu e fazer-lhe a sepultura semeada a sal como o_Marquês de_Pombal fez à dos Távoras. E se António Silva, por dois erros contra a Geórgia, já terá sido esquecido, agora é a vez de_João Félix que se limitou a falhar um penálti como qualquer jogador em qualquer equipa em qualquer época.
Mas há um acima de todos. E não podia deixar de o ser. Chama-se Cristiano Ronaldo. Não é apenas discutido entre nós, mas em todo o mundo, nesta altura que sabemos que já não voltará a jogar mais nenhum Europeu mas ainda não sabemos se quererá estar no Mundial de 2026.
Conheci Ronaldo em 2003 quando aceitei o cargo de assessor de imprensa da seleção nacional._Era um menino, e como menino que era, chorou convulsivamente no meu ombro no fim do jogo maldito da Luz, frente à Grécia, no dia 4 de Julho de 2004, já lá vão vinte anos. Somos amigos, considero-o um bom ser humano, generoso, camarada, sensível, nunca esquecendo a sua infância humilde e a humildade alheia._Mas não é do homem que aqui falo. É do jogador e das suas circunstâncias, agora mais complicadas do que nunca no conceito do que é a seleção nacional.
O ego. Descarto o ego. Ninguém com a dimensão de_Ronaldo é indiferente ao ego. Por mais chocante que alguns agora o considerem, ele sempre lá esteve e Ronaldo trabalhou-o ao longo dos anos em que se construiu a si próprio como um atleta exemplar que ambicionou e cumpriu o destino de ser o melhor jogador do mundo. O seu ego foi o nosso orgulho, não se esqueçam. Desgostam-me mais as pseudovedetas do que uma vedeta em declínio. Fala-se que é dispensável, que com ele Portugal joga com dez, que devia dar lugar a outro, mais jovem, mais capaz de marcar os golos que não marcou neste Campeonato da Europa._mas ninguém apresenta soluções. Ao contrário do que tinha sido até aqui, Ronaldo transformou-se num ponta-de-lança, cada vez mais fixo na área contrária, cada vez menos espalhado pelo campo. E, convenhamos, ainda é um tipo numeroso: só à sua conta segura pelo menos dois defesas que muitas vezes tropeçam trôpegos um no outro só com receio do nome. Quem tem Portugal para fazer esse lugar com competência? Diogo Jota não, decididamente. É um avançado que precisa de se movimentar por fora para aparecer na zona de golo, de preferência com outro a seu lado, como no_Liverpool. Sobra Gonçalo_Ramos, desaparecido no PSG, com apenas 11 golos em 29 presenças na equipa na Liga Francesa. É uma garantia? Em princípio não, na minha opinião de forma alguma, mas na prática não sabemos. Devia ter sido experimentado contra a Geórgia, no jogo dos suplentes? Devia. Mas jogou Ronaldo e o seu ego voltou à boca do povo. Ora, se Ronaldo joga todos os minutos de todos os jogos (e eu concordo que é um exagero que devia ser remediado) e, pelo que se diz à boca pequena, manda na seleção, a culpa não é dele. É de quem dispensa a autoridade que lhe foi conferida._E aqui falo de Roberto Martinez: se a opção de Ronaldo-para-toda-a-obra é sua, Cristiano está ilibado e vai para o relvado fazer o que pode nesta altura da sua evidente decadência física. Se é o capitão que o exige, o selecionador é dispensável. Não faz sentido que a federação lhe esteja a pagar o principesco ordenado que aufere. Vamos mais longe. É Ronaldo que decide por si só que marca todos os livres diretos? Ou a matéria é trabalhada nos treinos chegando-se à conclusão de que ele ainda é o mais eficaz? Outra pergunta sem resposta. Mas com algo de subentendido: é um ponto muito, muito fraco de uma equipa exageradamente sobrevalorizada e que, na verdade, está longe de ter a qualidade que lhe apregoam.
Sublinho: isto não é uma defesa de Ronaldo. É um exercício concreto de apresentação de um vazio que se via à distância ser impossível de preencher. Ronaldo, O Ronaldo, não existe mais, e temos esse sebastiânico fantasma no seu lugar porque ninguém voltará a ser Ronaldo e não há no horizonte dos próximos dez anos (para não ir mais longe) qualquer novo Ronaldo em perspetiva.
E aqui cabe agora a pergunta mais dolorosa: está Portugal preparado para viver sem Ronaldo? Estamos nós todos, que nos interessamos e gostamos de futebol, preparados para viver sem Ronaldo? Não estamos. Se há alguém convencido de que, depois da saída do capitão, a seleção nacional continuará a ser um ponto de profundo interesse por parte da imprensa internacional, esqueça. A dimensão universal de_Ronaldo tem sido, desde a saída de_Figo, a dimensão universal de Portugal. Esqueçam as multidões em redor dos hotéis e dos campos de treino. Não haverá japoneses, indianos, alemães ou brasileiros em romaria para os estádios envergando orgulhosamente camisolas do_Vitinha ou do Leão._Isso pura e simplesmente não existe. Como vamos regressar à nossa verdadeira pequenina dimensão é um mistério que gostaria de poder resolver. Desejamos viver sem ele? Não sei se saberemos viver sem ele.