A Alemanha comemora os 250 anos do nascimento do seu maior pintor oitocentista, Caspar David Friedrich (1774-1840), com um trio de importantes exposições, em Hamburgo, Berlim e Dresden. A mostra do Hamburger Kunsthalle, instituição que alberga Caminhante sobre o mar de névoa (c. 1817), a obra mais famosa do artista, terminou em abril, mas até agosto pode ainda ver-se ‘Caspar David Friedrich: Paisagens Infinitas’, na Alte Nationalgalerie de Berlim, e, de seguida, ‘Caspar David Friedrich: Onde Tudo Começou’, no Albertinum e no Kupferstich-Kabinett de Dresden. Em 2025, as celebrações prosseguem nos EUA: entre fevereiro e maio, o Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque exibirá ‘Caspar David Friedrich: A Alma da Natureza’.
Em Caminhante sobre o mar de névoa (imagem esq.), obra considerada um ex libris da pintura romântica, vê-se um homem de costas – a chamada Rückenfigur – imerso na grandiosidade da paisagem. O artista recorreu frequentemente a este tipo de figura, convidando o observador a colocar-se no seu lugar e a partilhar das suas emoções. A ausência de um rosto confere-lhe universalidade, facilitando a identificação de qualquer pessoa com ela.
Geradoras de sentimentos de admiração, maravilha e melancolia, as obras de Friedrich têm sido tradicionalmente analisadas à luz da ênfase romântica no sublime. De facto, a discussão filosófica de Immanuel Kant e Edmund Burke sobre o conceito de sublime – uma qualidade que evoca grandeza e suscita espanto, reverência e até temor –, não estava distante. À Natureza representada nas suas telas – costas rochosas, florestas e montanhas – tem sido atribuída não tanto a função de cenário, mas sobretudo a de metáfora para as experiências e emoções humanas, além de toda uma carga religiosa e espiritual.
Simultaneamente, a obra de Friedrich tem sido frequentemente examinada no contexto do clima político e cultural da Alemanha (ou melhor, dos Estados Germânicos) do início do século XIX, incluindo a influência das Guerras Napoleónicas e a emergência do nacionalismo alemão.
Contudo, existem leituras menos convencionais da obra do artista. Nina Amstutz, uma historiadora de ciência, ao analisar como a filosofia e a ciência ecoaram nos trabalhos de Friedrich, sobretudo numa fase mais tardia, sustenta em Caspar David Friedrich: Nature and the Self (2020) que até a escolha de algumas espécies botânicas por ele retratadas foi influenciada pelas ilustrações científicas de Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland, cuja expedição pelas Américas, entre 1799 e 1804, constituiu o embrião da biogeografia moderna. Segundo a autora, a evolução da pintura paisagista do artista decorreu de uma compreensão cultural abrangente da arte e da ciência como práticas complementares, assim como da sua proximidade a personalidades como Carl Gustav Carus, um amigo de Goethe que foi médico, naturalista e pintor, e Lorenz Oken, biólogo e figura de proa da Naturphilosophie, corrente de pensamento que, ao aplicar o idealismo alemão ao estudo da Natureza, defendia não haver separação entre o eu e o mundo natural. Anteriormente, a historiadora já identificara a influência de antigas ilustrações anatómicas em várias paisagens do artista. Por exemplo, em Árvores e Arbustos na Neve (1828), um emaranhado de ramos evoca representações dos vasos sanguíneos do corpo humano. A autora recorda como, no início de Oitocentos, Friedrich Schlegel, filósofo, crítico literário e escritor, e Johann Wilhelm Ritter, físico que descobriu a radiação UV, defenderam uma maior integração entre disciplinas humanísticas e científicas, promovendo um intercâmbio dinâmico entre artes visuais, filosofia e ciência.
Outra obra prima de Friedrich que espelha o espírito de uma época de grandes expedições científicas é O mar de gelo (1823-24). Esta tela (imagem dir.), que retrata um naufrágio no Ártico, é inspirada nos relatos da expedição de William Edward Parry ao Pólo Norte, entre 1819 e 1820, com o objetivo de encontrar a Passagem do Noroeste.
Por cá, o contraste com as celebrações alemãs dos 250 anos do nascimento de Friedrich é gritante. No ano em que deveríamos comemorar condignamente o quinto centenário do nascimento de Luís de Camões, o que há, afinal, que se veja?