MUNIQUE – De uma lado a poesia, do outro a prosa; de um lado a paixão, do outro a moderação; de um lado o colorido, do outro o cinzentismo; de um lado a coragem, do outro o medo; de um lado o Quixote, do outro o Sancho. O Espanha-França de hoje, aqui em Munique, será mais do que um simples jogo de futebol – mesmo que defina o primeiro finalista deste Europeu -, será um confronto de filosofias. Mesmo observando os factos à distância da objetividade, há a irresistível vontade de, se repetirem um e outro o que têm feito até aqui, estar a favor dos criativos e não dos passivos, simpatizar com a irreverência em desprezo do calculismo.
A França que surgiu na Alemanha está diferente, muito diferente daquela que encontrei no Qatar, há dois anos. Porque não tem a chama aglutinadora de Mbappé, perdido atrás de uma máscara que lhe protege o nariz partido logo no segundo jogo, e porque não tem Griezmann despojado da sua capacidade de organizar as linhas ofensivas. Sem eles, Didier Deshamps montou o seu conjunto em redor da força física. Gente como Camavinga, Tchouaméni, N’Golo Kanté, Colo ou Thuran (para não irmos à defesa formada por gigantes) tem, a todos os momentos, uma confiança inabalável na sua capacidade de se manter operacional ao máximo durante noventa minutos, ou mesmo cento e vinte, como aconteceu frente a Portugal. Aliás, pegando nesse exemplo (uma partida na qual Mbappé e Griezmann foram substituídos), notou-se no Volksparkstadion de Hamburgo a forma serena com os franceses permitiram que Portugal usasse e abusasse da posse de bola, optando por lançar a velocidade dos seus «sprinters» quando foi altura de criar perigo para a baliza de Diogo Costa: Neste momento, é o Sancho Pança que gosta de contrariar os sonhos de D. Quixote com a maçadora realidade. Não, a França não tremeu, nunca tremeu. Nem mesmo no momento das grandes penalidades nas quais os seus escolhidos optaram pela força bruta que os portugueses não têm, e saindo deles naturalmente vencedores. Recua, mostra receio. Mas é sobretudo com essa forma de não se deixar abalar, faça o adversário o que faça, que a seleção do galo demonstra, ao contrário do nós fizemos, a sua posição de candidato a estar em Berlim no próximo domingo. É um conjunto habituado a ganhar e que entra em campo com um irritante complexo de superioridade, assim a modos como um sorriso arrogante que nunca se desfaz mesmo quando está encostado às cordas.
Cavaleiros da alegre figura
Mas a Espanha não é Portugal, nem a Bélgica antes dele. É coqueluche deste torneio com o seu estilo «flamboyant» (já que estamos a falar de francesices), pleno de aventura e de momentos mágicos conseguidos por um grupo de jogadores arrebanhados a diversas equipas diferentes por um treinador, Luís de La Fuente Castillo, que nunca treinou um dos grandes clubes dos nossos vizinhos mas que parece ter descoberto a fórmula ideal para permitir a que muitos dos seus jovens não caiam na velhice de se amarrarem às habituais estreitezas táticas. Dá-lhes liberdade e pede-lhes responsabilidade. Os cavaleiros da alegre figura, nas suas espampanantes camisolas vermelhas, já passaram por cima da Itália e da Alemanha com a naturalidade de quem é melhor e sabe tirar prazer disso. Perderam Pedri, um dos seus jogadores mais importantes, vítima de uma entrada maldosa de Toni Kroos, que já veio pedir desculpa e bem pode metê-la no bolso do colete porque o jogador do Barcelona não entrará mais neste Campeonato da Europa, mas vale que Dani Olmo entrou para o seu lugar e cumpriu, marcando até um golo a Neuer, tal como o havia feito na destruição da tal Geórgia que nos venceu sem espinhas. Cinco jogos, cinco vitórias. E agora, pela frente, uma seleção mais forte do que todas as que defrontaram. Habituados a fazer dançar as defesas contrárias, os espanhóis vêm-se agora perante um bloco naturalmente inamovível, uma montanha de metros e quilos de músculos, ossos e tendões, que impõe a sua passividade atrás para disparar as suas flechas negras da frente. Decididamente assistiremos a algo de novo. E foi precisamente para ver algo de novo, algo que se espera excitante, sobretudo pelo divino descaramento da Espanha, que caminhei de regresso a Munique, onde estive no primeiro dia desta viagem à beira do fim. Num campeonato tão aporrinhado pela cobardia de quase todos, há que ir atrás da chama da coragem. Para bem do futebol tanto como para bem das páginas que ainda tenho para escrever.