Foi um artista de segunda linha, sem grandes angústias, sem um pensamento especialmente arguto ou desenvolto sobre a sua arte ou os seus propósitos, e que, no entanto, revelava um talento notável na vertente artesanal, essa capacidade de adaptar certas inovações e aberturas feitas por outros num prolífico regime de decoração que fez as delícias daqueles agentes e instituições que tratam de fazer encomendas para embelezar o espaço público, assim a sua assinatura comparece em igrejas, jardins ou estações de metro, e foi sendo desde muito cedo apoiado com bolsas, distinguido e condecorado, aclamado pelo abundante uso das cores, pelas linhas que transmitem alegria, uma qualidade vivaz. Ele mesmo não rejeitava a função decorativa das suas peças, tendo deixado uma obra imensa, sobretudo enquanto ceramista e pintor. «Quando me levanto de manhã, muitas vezes ainda de pijama, ponho o cavalete e ponho-me a pintar, a desenhar e a fazer bonecos. Começo logo ali a divertir-me», contava numa entrevista ao jornal Público. Foi um dos artistas com maior projeção internacional, com o rastro da sua obra a perder-se por coleções espalhadas por todo o mundo.
Tinha mão mais do que uma atitude ou uma perspetiva inovadora. Mas também foi esse desassombro o que lhe permitiu manter-se sempre tão ativo, tão cheio de projetos. «Nunca o vi sem que estivesse a pensar num novo projeto, nos seus sonhos. Isso, nele, nunca desapareceu», nota Álvaro Siza em declarações àquele jornal. Num texto com que colaborou na obra Manuel Cargaleiro, Vida e Obra, o arquiteto adianta que aquilo que fica patente na obra do amigo são, principalmente, «formas de alegria e esperança de vida, ilhas de felicidade que Cargaleiro cultiva numa dimensão e persistência que raramente se encontra na produção artística portuguesa; que, de qualquer modo, em nenhum outro artista, se constitui como centro da ação criativa e como eixo de sentido do conjunto da obra». Além de «uma alegria permanente de viver», Siza entende que o que o aproxima dos grandes artistas é a forma como em Cargaleiro inovação e vanguarda se aliam «a uma grande atenção à história, à ideia de continuidade, às raízes de qualquer forma de arte». Neste ponto, talvez valesse a pena levar em conta as palavras de Cargaleiro, que, talvez por modéstia, nunca se viu como um artista de primeiro plano. Talvez o seu grande atributo seja a generosidade no reconhecimento do trabalho dos outros. Numa entrevista ao SOL, em 2022, quando a Câmara Municipal de Lisboa lhe estendeu mais outra homenagem, com a atribuição da Medalha de Honra da Cidade, reconhece que em grande medida a sua principal ambição sempre foi fazer «uma espécie de museu, com sentido didático, para os outros». O seu trabalho também lhe foi dando os meios para ir reunindo ao longo da vida uma preciosa coleção, como lembra Siza, sublinhando como esta foi «um aspeto importante da sua criatividade, um alimento da sua criatividade».
De resto, aquele que ele mesmo considerou um dos momentos decisivos da sua vida foi um almoço para o qual foi convidado, ainda em Lisboa, pelo casal de pintores Maria Helena Vieira da Silva e Árpád Szenes. O convite foi-lhe feito depois dos dois terem ficado impressionados com as duas pinturas com que Cargaleiro participou na exposição coletiva “I Salão de Arte Abstrata”, na Galeria de Março, em Lisboa. Nascia aí uma relação de grande proximidade, e em muitos aspetos a influência que a pintura de Vieira da Silva tem na obra de Cargaleiro obriga a reconhecer que, em muitos dos seus quadros, há um claro efeito de epigonismo, embora este se defendesse notando que as suas linhas trabalhavam na superfície, e na vertical, enquanto Vieira da Silva buscava um efeito de profundidade. A partir do momento em que Cargaleiro se muda para Paris, em 1957, enquanto um dos primeiros bolseiros da Fundação Gulbenkian, as afinidades com a obra de Vieira da Silva além de estéticas, serão manifestadas na própria relação de trabalho entre ambos. Como lembra o jornal Público, era ele que executava os azulejos da pintora, e um exemplo dessa relação está patente na estação de metropolitano do Rato, em Lisboa. Terá sido esta relação que o fez ser integrado na Galeria Edouard Loeb, sendo acolhido por este e pela comunidade de artistas que ele representava. Além do casal Vieira da Silva-Árpád Szenes, Cargaleiro conviveu então com personalidades como Max Ernst, Jan Earp, Camille Bryen ou Natalie Gontcharova, vivendo na mesma rua de Picasso, a Rue des Grands Augustins, com quem embora se tenha cruzado algumas vezes, a enorme admiração que sentia pelo mestre andaluz ia ao ponto de o fazer sentir-se intimidado, razão pela qual nunca o abordou, ainda que tenha chegado a adquirir algumas das suas obras.
Onde a obra de Manuel Alves Cargaleiro assume de forma consensual uma indisputável centralidade é enquanto ceramista. De resto, é na oficina do oleiro José Trindade que terá germinado o seu percurso artístico, começando a fazer as suas primeiras experiências enquanto ceramista, com apenas oito ou nove anos, e só mais tarde, já em Belas Artes, é que irá descobrir a pintura. Num depoimento que deu para um livro de arte escrito pelo romancista francês Gilbert Lascault, e publicado em 2003, Cargaleiro assumiu que não consegue imaginar a pintura a óleo e a cerâmica como mundos diferentes: «Comecei a minha vida de artista como ceramista e sou ceramista mesmo quando faço pintura a óleo». «Não posso esquecer todos os meus conhecimentos sobre a história da faiança ou sobre a decoração mural quando pinto, assim como não esqueço a minha cultura pictórica quando crio em cerâmica», adianta.
Naquela publicação, Cargaleiro reconhece como na sua produção «está tudo muito ligado»: «É isso que constitui a minha especificidade. Eu não copio os meus quadros nos azulejos: pinto diretamente sobre a faiança, sem desenho prévio, como numa tela».
Para Alexandre Nobre Pais, que dirigiu o Museu Nacional do Azulejo em Lisboa e é desde Maio o diretor da Museus e Monumentos de Portugal, Cargaleiro «é o mais internacional ceramista da sua geração». Em declarações ao Expresso, Nobre Pais assinala o papel decisivo que teve Cargaleiro ao levar a cerâmica produzida em Portugal para outros países, nomeadamente para França e para Itália. «Isso é fundamental, para dar voz ao que se produzia em Portugal. É muito apreciado em Itália e em França, tem obra pública nestes locais e isso é um dos aspetos mais relevantes da sua presença na nossa produção cerâmica».
Se soube sintetizar no seu trabalho enquanto ceramista uma série de técnicas e influências vindas de toda a parte, tendo um «papel fundamental na renovação da azulejaria pública», como reconhece o curador João Pinharanda, Emília Ferreira, diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, releva nele «um gosto pela geometrização e pela fragmentação da imagem, pelo contraste da cor». Em declarações ao Público, adianta que a esse interesse não será de todo alheia «a influência que se lhe reconhece desde cedo dos trabalhos de patchwork, as mantas de retalho da Beira», a par da azulejaria portuguesa. Assinale-se, de resto, que Cargaleiro é filho de uma artesã de mantas de retalhos.
Tendo decorado uma das estações centrais do metro da capital francesa, e contando com fundações e museus espalhados por Portugal e Itália, a produção artística de Cargaleiro é enaltecida por ter mantido uma relação próxima com a tradição e o imaginário das suas raízes beiroas, como vinca Marcelo Rebelo de Sousa na nota de pesar: «Prova disso é a memória das imagens e das cores da Beira Baixa na sua obra, nomeadamente a lembrança das mantas de retalhos», assim como «a empenhada presença do artista na região onde nasceu, através da Fundação e do Museu Cargaleiro».
A sua vida chegou ao fim, aos 97 anos, no passado domingo, tendo a notícia sido veiculada pela nota publicada no site da Presidência da República: «O mestre Cargaleiro deixou a sua assinatura em igrejas, jardins ou estações de metro, e em inúmeras peças tão geométricas e cromáticas como as de outros artistas cosmopolitas que viveram em Portugal. Por isso, tendo estado fora décadas, continuou a sentir-se, e continuámos a senti-lo, um artista português».