Céline Dion. A coragem para se ser vulnerável

A sofrer de uma condição neurológica que afeta uma pessoa num milhão, Céline Dion, de 56 anos, luta contra a síndrome da pessoa rígida.

Começou por ser uma estrela no mundo francófono, mas rapidamente aprendeu Inglês e arriscou. Associamos o seu nome de imediato a sucessos como My Heart Will Go On mas, nos últimos anos, tem estado longe dos palcos. A sofrer de uma condição neurológica que afeta uma pessoa num milhão, Céline Dion, de 56 anos, luta contra a síndrome da pessoa rígida. E podemos assistir a essa luta destemida no documentário I Am: Celine Dion.

Num monólogo reflexivo de I Am: Celine Dion, a lendária cantora compara-se a uma macieira. Lembra como deu às pessoas as melhores maçãs, uma metáfora para os seus talentos partilhados com um público global. Agora, diz ela, os seus ramos estão a enfraquecer e a produzir menos maçãs, mas a fila de pessoas permanece. A sua conclusão é comovente: «Não quero que esperem na fila se eu não tiver maçãs». O documentário, dirigido por Irene Taylor, indicada ao Óscar e agora transmitido pelo Prime Video, retrata Dion a contemplar uma vida com capacidade reduzida para os seus fãs. Após vários cancelamentos de concertos em 2022, Dion revelou que tinha síndrome da pessoa rígida, uma doença autoimune rara que causa rigidez muscular e espasmos. Desde então, não se apresentou publicamente e lançou apenas algumas músicas novas. I Am: Celine Dion cobre o seu período de reabilitação, mostrando-a raramente a sair de casa.

Mas voltemos ao início. Dion nasceu a 30 de março de 1968 em Charlemagne, Quebec, Canadá. É a mais nova de 14 filhos de uma família muito musical. Desde cedo, Dion mostrou um talento excecional para o canto. Aos 12 anos, gravou uma música com a sua mãe e um dos seus irmãos, que a enviaram ao produtor musical René Angélil (que viria a ser seu marido). Impressionado com a voz da então criança, Angélil hipotecou a sua casa para financiar o primeiro álbum de Dion, La voix du bon Dieu, lançado em 1981. Nos anos 80, Dion estabeleceu-se como uma estrela no mercado francófono com sucessos como D’amour ou d’amitié e Mon ami m’a quittée. Ganhou vários prémios em festivais musicais europeus, incluindo o Festival Mundial da Canção Popular em Tóquio e o Concurso Eurovisão da Canção em 1988 representando a Suíça com a música Ne partez pas sans moi.

No início dos anos 90, Dion começou a gravar em inglês. O seu primeiro álbum em inglês, Unison (1990), continha o sucesso Where Does My Heart Beat Now, que alcançou o Top 10 nos Estados Unidos. A sua fama cresceu com o lançamento de The Colour of My Love (1993), que incluía os sucessos The Power of Love e Think Twice. Os álbuns Falling into You (1996) e Let’s Talk About Love (1997) consolidaram o seu status como uma superestrela internacional. O segundo incluía My Heart Will Go On, tema principal do filme Titanic, que se tornou um dos singles mais vendidos de todos os tempos. Dion ganhou numerosos prémios Grammy e Juno durante este período.

Por isso, é estranho percebermos que este documentário íntimo e comovente oferece o retrato de uma superestrela durante o tempo de inatividade e não sob os holofotes. Vemos Dion, agora com 56 anos, a brincar com os filhos na mansão deles em Las Vegas, a alimentar o cão, a fazer café e a  aspirar. É que, em 1994, Dion casou-se com René Angélil e o casal teve três filhos (depois de ter travado uma luta contra a infertilidade): René-Charles (nascido em 2001) e os gémeos Eddy e Nelson (nascidos em 2010). Dion fez uma pausa na música no início dos anos 2000 para se concentrar na sua família. Voltou com um espectáculo em Las Vegas, A New Day…, que foi apresentado no Colosseum do Caesars Palace de 2003 a 2007. Durou cinco anos, contou com 717 performances e foi dirigido por Franco Dragone, sendo considerado um dos concertos de maior sucesso em Las Vegas. Dion continuou com uma série de tours mundiais e lançamentos de álbuns, incluindo Taking Chances (2007) e Courage (2019). Importa referir que Angélil faleceu em 2016 devido a um cancro na garganta.

Depois de A New Day…, entre 2008 e 2009, a Taking Chances World Tour passou por variados países e foi uma das tours mais extensas e bem-sucedidas de Céline, passando por cinco continentes e tornando-se numa das digressões com maior lucro de todos os tempos. Já a última tour, a Courage World Tour, aconteceu entre 2019 e 2020. Marcou o regresso de Dion aos palcos após um hiato e foi promovida para divulgar o seu álbum Courage. Apesar de ter sido interrompida pela pandemia de COVID-19, foi um grande sucesso. Voltemos ao presente. No documentário, muitas das vezes, vemos Dion sem maquilhagem e com os cabelos grisalhos visíveis, sendo que o filme evita a vaidade típica dos documentários musicais.  Mas sinais subtis da sua doença são evidentes: dedos imóveis, dificuldade para caminhar e problemas de equilíbrio. A síndrome afetou gravemente a sua voz antes imaculada. Numa cena, sofre para cantar I Wanna Know What Love Is, perdendo muitas notas e chorando ao admitir: «É muito difícil para mim mostrar-vos isto». Tal é justaposto com performances anteriores de My Heart Will Go On, destacando a grande diferença entre as suas performances ao longo dos anos.

As filmagens vintage incluem momentos como Dion a procurar apartamentos durante a gravidez e o nascimento do seu primeiro filho. O filme medita sobre o envelhecimento e o declínio das habilidades de uma estrela. A condição de Dion força-a a enfrentar sentimentos que muitas estrelas evitam. O documentário oferece uma visão mais aprofundada das suas lutas além do anúncio inicial de 2022. Dion, que inicialmente culpou os cancelamentos de concertos por infeções nos seios da face e nos ouvidos, revela que teve sintomas por quase duas décadas.

O que é a síndrome da pessoa rígida?

Nos últimos minutos do documentário – que tem a duração de 1 hora e 42 minutos – vemos Dion a gravar a música-título da comédia romântica de 2023 Love Again. Uma vez capaz de gravar várias músicas numa noite, agora tem dificuldade com algumas linhas. No entanto, acompanhamos uma das crises de Dion que, devido à síndrome, tem espasmos. Acompanhamos esses momentos árduos que exibem uma vulnerabilidade rara para uma estrela global. Após os espasmos, Dion expressa o seu constrangimento e o seu terapeuta sugere superestimulação como a causa.

Mas… Em que consiste a doença de que Céline Dion padece? «A síndrome da pessoa rígida é uma condição neurológica autoimune extremamente rara, afetando cerca de uma pessoa em cada milhão. Os seus principais sintomas são rigidez muscular e espasmos musculares dolorosos», começa por explicar à LUZ Socorro Piñeiro, especialista em Neurologia. «A síndrome tem várias formas, sendo a clássica a mais comum. Afeta pessoas de ambos os sexos, embora as mulheres tenham o dobro de risco em comparação aos homens. Pode surgir em qualquer idade, mas é mais frequente entre os 30 e 60 anos», frisa a profissional de saúde que exerce funções na Joaquim Chaves Saúde e na Lusíadas Saúde, adiantando que esta condição «está frequentemente associada a outras doenças autoimunes como doença celíaca, diabetes tipo 1, anemia perniciosa, doença autoimune da tireoide e vitiligo». «Os sintomas variam em severidade e incluem rigidez muscular, espasmos musculares dolorosos (que podem ser desencadeados por ruído, contacto físico, mudanças de temperatura ou stress)» e, por isso, a neurologista frisa que Dion não é capaz de viver concertos e tours como outrora devido ao impacto que estes têm em si. Para além disso, temos de ter em conta «a ansiedade e a agorafobia devido à imprevisibilidade dos espasmos, a dor e rigidez especialmente na região lombar e nas pernas, as dificuldades de mobilidade e alterações de postura».

Relativamente às causas, «a causa exata é desconhecida, mas é considerada uma condição autoimune», sendo que «muitos doentes apresentam anticorpos que interferem no controlo dos movimentos musculares». Deste modo, «o diagnóstico é complexo e pode levar anos», pois «inclui exames de sangue para detetar anticorpos específicos, eletromiografia e punção lombar». Socorro Piñeiro frisa que «não há cura, mas os tratamentos visam gerir os sintomas e retardar a progressão da doença». Por exemplo, é possível tomar «medicamentos como benzodiazepinas, relaxantes musculares e anticonvulsivantes» e apostar «na imunoterapia e nas terapias não farmacológicas (fisioterapia, alongamentos, massagem, hidroterapia, ioga, meditação)».

Quanto ao prognóstico, «este varia conforme a severidade dos sintomas e a resposta ao tratamento», sendo que «as intervenções precoces são cruciais para melhorar a qualidade de vida e prevenir complicações a longo prazo». Por outro lado, «não há estratégias conhecidas para prevenir a síndrome, uma vez que as suas causas exatas ainda não são totalmente compreendidas», sublinha Socorro Piñeiro que, em 20 anos de carreira enquanto neurologista, lidou com três casos desta condição.

A cantora fez uma rara aparição pública para assistir ao concerto do violoncelista croata Hauser, no Encore Theater do Wynn Las Vegas, no sábado, 22 de junho, acompanhada dos seus filhos Nelson e Eddy, de 13 anos. Hauser partilhou um vídeo nas redes sociais, na terça-feira, 25 de junho, refletindo sobre o seu encontro com Dion. No vídeo, Dion diz ao músico: «Na verdade, sou uma grande fã». Hauser responde: «Sou o seu maior fã», ao que Dion brinca: «Não. Vamos chatear-nos. Sou a maior fã». Os dois abraçam-se e o vídeo mostra Dion a entrar no concerto enquanto Hauser toca My Heart Will Go On. «Quero dedicar esta performance à minha cantora favorita de todos os tempos, Céline Dion», disse Hauser ao público. A aparição de Dion no concerto ocorreu poucos dias após ter regressado ao tapete vermelho com o seu filho mais velho, René-Charles Angélil, para a estreia do seu documentário, em Nova Iorque. Dion agradeceu aos seus filhos e aos fãs pelo apoio constante. «Obrigado, René-Charles. Obrigado, Nelson. Obrigado, Eddy. Muito obrigado», declarou. «E obrigado a vocês, meus fãs, a vossa presença na minha jornada tem sido um presente além das palavras. O vosso amor e apoio intermináveis em todos os problemas trouxeram-me a este momento».