BERLIM – Inglaterra, ah!, que medo impunha a Inglaterra nesse tempo em que, por arrogância e por vaidade, se recusava a misturar-se com quem não jogasse o «football» dentro das fronteiras da ilha. Quando, no dia 15 de Maio de 1929 se apresentou em Madrid, no Estádio Metropolitano, campo do Atlético, para enfrentar a Espanha, a imprensa dos nossos vizinhos babava de vaidade por ir receber os mestres ingleses. Se até ao início da I Grande Guerra as vitórias contra selecções continentais eram geralmente marcadas por goleadas de truz – os confrontos com a Escócia, Gales ou Irlanda tinham outra dinâmica -, depois de 1918 a Inglaterra sofreu, e muito, a perda de uma geração que tinha trocado os relvados pelas trincheiras. Por seu lado, o futebol espanhol tinha recebido uma forte influência inglesa, sobretudo pela chegada de técnicos britânicos ao país, o mais famoso de todos eles Fredrick Beaconsfield Pentland, que dirigiu clubes como o Atlético de Madrid, o Athletic Bilbao, o Racing de Santander e o Oviedo. Ah! E «last but not the least», o profissionalismo tinha vindo para para ficar.
O calor era tremendo nessa tarde de Madrid, e os ingleses queixar-se-iam dele no final. Apesar disso, caíram como feras sobre o seu adversário, aplicaram o seu estilo voluntarioso e com lances de corpo a corpo duros, fizeram a bola sobrevoar por diversas vezes a área do grande Ricardo Zamora, e trataram de assegurar uma vantagem interessante, 2-0 com golos de Joe Carter, do West Bromwich Albion, e de Joe Bradford, do Birmingham. A Espanha parecia entregue ao seu destino mas não era por acaso que tinha o apodo de Fúria. Os seus homens lutavam por cada centímetro de terreno com os dentes cerrados como se enfrentassem um miúra na arena. Surpreendentemente, antes do intervalo, chegaram ao empate através de Gaspar Rúbio e de Jaime Lazcano, ambos do Real Madrid. Nas bancadas, os 45 mil espectadores estavam tão estupefactos como excitados. Bradavam pela sua equipa num exagero de decibéis. Pouco lhes importava, ou provavelmente desconheciam, que na sua empáfia, o comité de selecção inglês tivesse trazido seis jogadores que não jogavam no campeonato principal e sim em clubes secundários. Para o que era, pensavam, bastava e sobrava. Grave engano.
A vitória e a desforra
O segundo tempo viu a Inglaterra voltar ao comando no marcador através de um penalti convertido por Carter. Mas apenas aos 73 minutos. Até aí, num contínuo golpe e contra golpe, o jogo tornara-se rijo e equilibrado. Os espanhóis sentiam que estavam à beira de um momento histórico e agarraram-se à sua tenacidade até à inconsciência. Ricardo Zamora, que parecera culpado nos dois primeiros golos, era agora o herói da partida com a sua boneca de trapos, o seu talismã, observando tudo no seu lugar dentro da baliza com os seus olhos de vidro. Tudo poderia levar a crer que o 3-2 derrubaria a resistência espanhola, mas isso era ignorar a fibra daqueles que, em campo, suavam em bica as suas camisolas garridas e vermelhas como sangue. Era uma batalha que se disputava no Metropolitano. E, em todas as batalhas, ninguém quebra porque um momento de distracção deita tudo por terra.
Faltam dez minutos para o fim e Rúbio volta a marcar e o resultado está em 3-3. Não contenta os espanhóis. Há ainda uma força que lhes vem da alma embalada pelo sonho de vencer os invencíveis ingleses. Arriscam. José María Mateos, um jornalista e treinador que foi seleccionador de Espanha por uma década, manda os seus homens para a frente. É premiado pela sua protérvia. Severiano Goiboru Lopetegui, natural de Pamplona, jogador do Barcelona, 23 anos, marca o golo da vitória aos 82 minutos. Em êxtase, mal o árbitro Jon Langenowve (também conhecido pelo nome latino de Joannes Laangenus), da Bélgica, apita para o fim, os adeptos invadem o campo e carregam com os seus ídolos em ombros. A Espanha torna-se a primeira equipa continental a vencer os mestres ingleses e entra para os cadernos da história do futebol mundial.
Os jornais dos dias que se seguiram não foram pródigos a comentar o acontecimento. A imprensa inglesa só mandou um enviado-especial e tratou de ignorar convenientemente o inconveniente desaire. Mas o Daily Express foi duro, e o seu correspondente em Madrid carregou na ferida: «Nunca pensei que chegaria o dia em que veria um humilde onze espanhol humilhar a Inglaterra». Já em Espanha, a vitória foi enaltecida, como seria de esperar. O Mundo Deportivo falava de um triunfo arrancado do coração dos jogadores, mais do que da sua qualidade técnica. La Vanguardia escarnecia: «Se os ingleses não conseguem mostrar mais do que isto é porque vivem numa grave crise». Alfredo Relaño, um dos maiores jornalistas espanhóis de sempre, aconselhava a que se inaugurasse uma placa no Metropolitano para que essa tarde maravilhosa nunca fosse esquecida. Não foi.