BERLIM – O grande relógio da Alexanderplatz, aqui erguido desde 1969, dá-nos na sua redondez de metal as horas de 148 das maiores cidades do mundo. A grande praça aberta ferve de movimento, cruza transportes públicos e espreita as águas do Spree. Coloquialmente, os berlinenses chamam-lhe apenas de Alex. Ganhou o nome após a visita do czar Alexandre I da Rússia, em 1805. Foi local de uma feira de gado. Viu nascer uma estação de caminhos-de-ferro do mesmo nome, tornou-se, a par da Potsdamer Platz um dos centros nocturnos mais emocionantes da cidade. Deu título ao livro de Alfred Döblin, médico, poeta, prosador do expressionismo alemão, que depois foi adaptado ao cinema por Reiner Werner Fassbinder e por Oil Jutzi. O enredo de Döblin fala de Franz Biberkopf, um calmeirão alto e forte que sai da prisão depois de ter cumprido pena pelo assassinato da sua namorada num momento de ciúmes mais violento do que na Cavalaria Rusticana. Franz quer uma vida nova e limpa. Instala-se nas redondezas da Alexanderplatz, arranja amigos, mulheres, mas a existência contraria as suas esperanças. O mal continua a rondá-lo, amigos falsos acham-no a pessoa ideal para os ajudar em crimes planeados, a sua resistência acaba no momento em que o empurram para debaixo de um carro em movimento e se vê amputado de um braço. Torna-se um chulo. Um bêbado. Volta à cadeia por um homicídio que não cometeu. Quando é novamente posto em liberdade arranja um emprego de porteiro e mergulha num dia a dia sem metafísica. Volto ao Brecht e à Doença de um Poderoso Estadista: «Se este homem insubstituível ressuscitasse ao oitavo dia/Não encontraria em todo o Império uma vaga de porteiro».
É domingo, daqui a pouco joga-se a final do Europeu. Berlim vai ficar para trás e voltarei a casa como se ressuscitasse ao trigésimo dia desde quotidiano de escrever o que vejo e o que sinto. Serei sempre, como dizia o Torga, um barco que se recusa ao destino de ter cais e, por isso, cada minha chegada é o princípio de nova partida. Olho a gente que passa, observo a alegria dos que envergam camisolas vermelhas ou brancas numa antecipação de vitórias a cada grito, a cada canção, a cada marcha colectiva na direcção do Estádio Olímpico. É para lá que vou também. Embrulhado nesta paixão pelo ofício do QWERT. Já não vejo o relógio da Alexanderplatz. Pode dar as horas de 148 cidades de todo o planeta mas não nos avisa que, se calhar, é muito mais tarde do que pensamos.