BERLIM – Talvez haja muitos que não saibam que, quando Maria Bethânea cantava “Sonhar mais um sonho impossível/Lutar quando é fácil ceder/Vencer o inimigo invencível/Negar quando a regra é vender” estava na verdade a citar D. Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, na sua tirada: “Sonhar o sonho impossível/Sofrer a angústia implacável/Pisar onde os bravos não ousam…”. Obra prima da literatura espanhola, o Quixote é um hino à valentia, tal como a Espanha foi, neste Europeu, um hino à coragem de quebrar as vidraças do medo que fecharam quase todas as equipas que aqui estiveram numa redoma melancólica onde se resumiram jogos menores. Mas eis que os Cavaleiros Vermelhos da Alegria nos reconciliaram com o jogo e com a sua vertente lúdica. De La Fuente, um treinador de pouco currículo mas de lúcida imaginação, construiu uma equipa rebelde, criativa, com ganas de se impor a todos os adversários, sonhando, enfim, o sonho afinal possível de vencer uma competição à qual chegou com muitas dúvidas a pesar-lhe sobre as costas, principalmente pela escandalosa juventude de algumas das suas figuras principais, a mais brilhante de todas um menino que fez no sábado 17 anos chamado Lamine Yamal Nasraoui Ebana. Escreveria Nelson Rodrigues, se fosse vivo, que nem a um filme da Brigitte Bardot o deixam ir sem ser acompanhado pelo pai.
Podemos dizer agora que foi uma vitória esperada desde a primeira entrada em campo desta Espanha maravilhosa com a qual nós, portugueses, sempre prontos a transformar a nossa mediocridade numa incompreensível farronca de superioridade que se desfaz com a facilidade de um pucarinho de Estremoz, temos muito para aprender. Podemos dizê-lo porque a Roja foi por aí fora ganhando jogos atrás de jogos, sete no total, confiando não apenas na qualidade dos seus praticantes como num estilo de jogo que utiliza o passe para ser ofensivo e defensivo, conforme as necessidades, mas nunca tem a bola só por ter, para passar tempo ou para simplesmente perdê-lo. Dificilmente um campeão tem em seu redor tanta aceitação. Não haverá hoje, que já se passaram dois dias sobre a final de Berlim, e as azias puderem ser curadas a doses de sais de frutos, quem ponha em causa um triunfo tão categórico. E, se há, porque no universo nem todos gostam do amarelo e vermelho, talvez lhe fizesse bem rebobinar as cassetes e ver como nos sete jogos ganhos, quatro foram contra campeões do mundo: Itália, Alemanha, França e Inglaterra. Sim, porque ganhar aos grandes torna a proeza ainda mais convincente.
ARTE E EMOÇÃO. Dizia o Quixote para o seu fiel Sancho Pança: “A liberdade, Sancho, não é um pedaço de pão”. O Engenhoso Fidalgo Don Quixote de La Mancha é uma obra fantástica que confronta a todo o momento a fantasia com a realidade. Diria mesmo que põe à nossa frente, com um descaramento divino, a maravilha do sonho contra o aborrecimento dos factos. O nosso António Gedeão resumiu a dicotomia num poema perfeito: “Onde Sancho vê moinhos/Quixote vê gigantes/Vê moinhos? São moinhos/Vê gigantes?/São gigantes”. A Espanha transformou todos os gigantes em moinhos porque transformou a fantasia em realidade. Dispôs-se ao divertimento e divertiu-nos. Recusou ser mordida por esse enervante mosquito do tédio e participou, igualmente, em justas que tiveram emoção até ao fim, como aconteceu nos três últimos jogos, primeiro batendo uma Alemanha burocrática quase no fim do prolongamento e, depois, dobrando o golo inicial da França e recusando à Inglaterra o sonho que adveio de um empate meio inesperado.
No dia 20 de Junho, em Gelsenkirshen, vi o Espanha-Itália e não me conformei com a reduzida vitória por 1-0, tão grande foi a superioridade espanhola, tantas foram as oportunidades para sair de lá com um resultado muito mais volumoso, quase a fazer lembrar a final de Kiev, em 2012, na qual, após terem chegado aos 4-0, os nossos vizinhos deixaram pura e simplesmente de jogar para não espinafrarem ainda mais os adversários, mostrando um respeito magnífico pelos derrotados. Em Munique, estive também no Espanha-França que mostrou à saciedade que para bater um bloco como o francês não basta andar à roda dele como uma mula em volta do poço onde sobem e descem os alcatruzes da nora. Tal e qual Portugal fez, em resumo. Era preciso agredir a França, e a Espanha fê-lo com um toque de beleza ímpar no golo de Yamal. E não se despreze a França, apesar de ter sido demasiado inconsequente no ataque, privada de Mbappé e de Griezmann em condições, porque em termos de controlo de jogo é das selecções mais interessantes que passou por este Campeonato da Europa, exibindo um meio campo que junta atributos físico e técnicos difíceis de igualar. Após a vitória na final de domingo, diria que foram precisamente os franceses quem mais exigiu desta Espanha campeã indiscutível. Porque obrigaram Rodri e Fabián Ruiz, sobretudo estes dois, mas também Dani Olmo, a imporem-se igualmente nesse capitulo, o da capacidade física. Sim, porque não falamos de um conjunto de meninos levezinhos, de rapazitos imberbes que se limitam a exibir habilidades com uma bola, falamos de uma equipa que funciona como tal e não se deixa atropelar por opositores com mais quilos e mais centímetros, pelo contrário, dispõe-se a combater cara a cara contra quem for. É na mecânica que temos de descobrir o segredo de La Fuente. Na movimentação constante dos êmbolos do meio campo, na certeza absoluta do passe e no companheirismo necessário para que, ao mínimo erro, este seja compensado por aquele que está mais perto do foco do problema. Não, a liberdade não é um pedaço de pão. Por isso é dada com prodigalidade e nos momentos e locais em que se torna fundamental. E conquista-se, palmo a palmo, à medida que o tal jogo de passes, agressivo e contundente, vai descobrindo os caminhos por onde ela levará ao êxito dos que a procuram. Eis-nos com uma novidade agradável que merece atenção. E não merece, certamente, que a compliquem com aborrecidas análises aritméticas, porque a Espanha foi também a campeã da simplicidade. O golo de Oyarzabal, o último deste Europeu, está aí para prová-lo. Revejam-no. Vale a pena. Neste campeão tudo vale a pena.