O meu tio José

Estando o meu irmão mais velho preso por razões políticas, num processo complicado, o meu tio demitiu-se do cargo de reitor do liceu D. João de Castro, que então exercia, para defender o meu irmão em tribunal.

Leiria acaba de homenagear o meu tio José Hermano Saraiva com um busto no Parque que já tinha o seu nome. Embora a família fosse natural de Donas, uma pequena aldeia da Beira Baixa, perto do Fundão, ele nasceu em Leiria quando o pai, José Saraiva, lá estava como reitor do liceu local. Também o meu pai, António José Saraiva, nasceu em Leiria e foi homenageado há uns anos com a Medalha de Ouro da cidade. Curiosamente, eram os dois irmãos que tinham uma relação mais próxima. 

Os afetos uniam-nos, muito acima das ideologias. Discutiam interminavelmente, zangavam-se, mas não deixavam de se adorar. O meu tio tinha carro – um grande Buick preto – e nós não, pelo que, quando íamos a festas em casa dos meus avós, dava-nos boleia. Eles moravam no Bairro do Restelo e nós em Belém, e passavam por nossa casa a buscar-nos. Como eram 7 (o meu tio tinha 5 filhos, todos rapazes) e nós 4, no carro iam 11 pessoas. 

Numa dessas ocasiões – era véspera de Natal –, o meu pai e o meu tio envolveram-se em violenta discussão, e o meu pai disse a certa altura: «Zé, pára o carro que eu quero sair». Estávamos na 24 de Julho, próximo da Av. D. Carlos, os meus avós moravam na Rua Eduardo Coelho, perto da Academia das Ciências – e lá tivemos de palmilhar o resto do caminho a pé, numa noite fria.

Depois o meu pai partiu para Paris. Mais tarde, o meu irmão mais velho foi preso por razões políticas, num processo complicado. Ora, o tio José, que era reitor do liceu D. João de Castro, demitiu-se para o defender em tribunal. São atitudes que não se esquecem. 

Embora fosse um homem um tanto narcisista, o meu tio (e padrinho), era muito consciente. Pouco depois de ter sido empossado como ministro da Educação, disse-me numa festa familiar: «Sabes, Zé, eu daqui para a frente só posso descer. Cheguei a ministro, a primeiro-ministro não chegarei, por isso irei sempre a cair». 

Mesmo depois de ser ministro foi visitar o meu pai a Paris, e aí estavam completamente nos antípodas: ele governante de Salazar, o meu pai exilado político, impedido de regressar ao país por Salazar.

Quando o meu pai cá veio, na ‘Primavera marcelista’, fomos almoçar os 3 à Quinta das Torres, em Azeitão. A conduzir, ia o motorista do Ministério. Lá chegados, quando o empregado veio trazer a lista, o meu pai disse espontaneamente: «Eu quero bacalhau com batatas». O meu tio ficou um pouco embaraçado, e disse-lhe ternamente: «Ó António, talvez este não seja o melhor sítio para comer bacalhau…». Esta cena definia os dois: um nunca deixou de ter uma costela rural, o outro adaptou-se à cidade.

O regime caiu quando o meu tio José era embaixador de Portugal em Brasília. Voltou a Lisboa, onde sofreu miseráveis vexames: foi saneado de professor do liceu, e pessoas que lhe deviam favores fingiam não o conhecer. Mas isso acontece em todas as revoluções. O 25 de Abril, porém, havia paradoxalmente de lhe proporcionar uma 2.ª vida.

Antes de ir para Brasília tinha feito um programa na RTP chamado O Tempo e a Alma, que constituíra um sucesso. Aliás, dizia-se que fora isso que levara Marcello Caetano a ‘despachá-lo’ para o Brasil, pois não gostava do programa.

Depois de regressar a Lisboa, o meu tio acabou por voltar à TV (penso que pela mão de Vasco Graça Moura) e os seus programas foram êxitos estrondosos. E aí começaram a chamar-lhe ‘comunicador’, o que o incomodava profundamente. «Ó Zé, eu não sou nenhum ‘comunicador’, sou um historiador. Só que procuro contar a História de uma forma atractiva» E conseguia-o. Talvez fosse isso, de resto, que suscitava críticas de alguns académicos, que preferiam uma História menos colorida. 

Posso testemunhar que o meu tio tinha uma cultura assombrosa. Depois do 25 de Abril, fechou-se numa casa fora de Lisboa, como um eremita, e sem consultar um único livro escreveu a História Concisa de Portugal. 

Tive o gosto de publicar no SOL, em fascículos, as suas memórias inéditas, que ele me entregava em folhas escritas à mão. É um livro belíssimo, que mereceria ser reeditado, onde conta histórias deliciosas que aqui não cabem por falta de espaço.

Teve vários enfartes ao longo da vida. Num deles, já próximo do fim, o 1.º pensamento que teve ao acordar foi: «Eu não podia morrer, pois ainda não acabei a História de Portugal». Tratava-se de uma história que estava a publicar em vídeo.

Ele era assim: trabalhou até ao fim. Percebi que, quando deixasse de ir à televisão, por impedimento físico, morreria. A televisão para ele tinha-se tornado uma forma de respirar. E assim aconteceu. 

O único político que compareceu ao seu funeral foi Ramalho Eanes.