No fim, da sua vida só nos ficou uma história muito mal contada, e que diz mais sobre a indústria dos tabloides do que sobre quem ela foi. Shannen Doherty tinha apenas 19 anos quando se estreou no papel que lhe transformou a vida, fazendo dela uma celebridade, e logo depois uma das atrizes mais odiadas da sua geração. Tinha aquele rosto inesquecível, em forma de coração, lembrando uma Branca de Neve, mas com algo torcido. O mesmo cabelo negro, dois olhos ligeiramente desencontrados, grandes, verdes, e deu uma verdadeira e tumultuosa vida a Brenda Walsh, uma transplantada vinda do Midwestern que preferia homens mais velhos, andava atrás do bad boy da escola e se engalfinhava amiúde com os colegas na mais famosa telenovela para adolescentes da década de 90, Beverly Hills, 90210. Tendo-se visto um alvo constante da imprensa tabloide, sendo incessantes os rumores sobre as disputas e conflitos com os colegas nos sets de filmagens, o estilo de vida extravagante de alguém que andava sempre na farra, colou-se-lhe, alimentando a curiosidade do público quanto à sua vida privada, às ligações amorosas, não demorando para que a colagem entre a personagem e a atriz fosse total. No auge da sua fama, circulou a alegação feita por um dos seus namorados de que ela o ameaçara com uma arma de fogo, e de que o tribunal tinha emitido uma ordem de restrição contra ela. Chegou a ser criada uma newsletter de ódio dirigido a Brenda Walsh, e surgiu depois uma linha telefónica para onde as pessoas podiam ligar apenas com o fito de dar largas ao seu ódio por ela.
Doherty nunca mais se livrou da imagem de atriz problemática, e depois de ter descoberto que tinha um cancro da mama, em fevereiro de 2015, tentou de tudo para fazer as pazes com antigos colegas e deixar outra impressão no público. Tendo sempre mantido os seguidores a par da evolução da doença, no verão de 2016 rapou o cabelo, e, no ano seguinte, anunciou que o cancro tinha entrado em remissão. Mas regressou em 2020, e em 2023 anunciava que este se tinha espalhado para o cérebro e mais tarde para os ossos. Manteve um Podcast (Let’s Be Clear) onde confrontou as polémicas e falou abertamente sobre o fim que se aproximava. «Para mim, o cancro fez-me fazer um balanço da minha vida e mudar as minhas prioridades, e a minha prioridade neste momento é a minha mãe», confessou, adiantando que estava a vender grande parte dos seus bens, para evitar que tivesse de ser a mãe a tratar da coleção de mobiliário. Na altura, numa entrevista à revista People, recusou abrir mão da vida sem dar luta: «Ainda não fartei de viver. Não estou farta de amar. Ainda não criei tudo o que esperava criar. Nem estou farta de esperar que as coisas mudem para melhor. Para mim ainda não acabou». E foi assim que a morte chegou no passado sábado, aos 53 anos, um dia depois de ter conseguido por fim ver assinados os papéis de divórcio do fotógrafo Kurt Iswarienko, com quem se casara em outubro de 2011.
Quando conseguiu o papel que mudou tudo, Doherty tinha já vivido todo um arco narrativo como atriz infantil. Nascida a 12 de abril de 1971, em Memphis, filha de John Doherty Jr., um consultor de hipotecas, e de Rosa (Wright) Doherty, uma esteticista, aos 10 anos, Shannen conseguira já dar cartas na representação, fazendo os típicos papéis da miúda inocente, como Jenny Wilder em 18 episódios de Little House on the Prairie e como Kris Witherspoon em duas temporadas do drama familiar Our House. Mas foi ao encarnar Heather Duke, uma adolescente cheia de manha e perversidade, intrigando para elevar o seu estatuto, no filme de 1988 Heathers, uma comédia negra de suspense com Winona Ryder e Christian Slater nos principais papéis, que provou que tinha um outro alcance. Estava longe de imaginar como, a partir dali, a sua vida e a das personagens iriam enredar-se de tal modo que não seria fácil para as audiências ou mesmo para ela achar o fio à meada. Vinda do Minnesota, Branda Walsh dá por si no ventre da besta californiana com o seu irmão Brandon, e acaba por fazer uma série de escolhas ingénuas e moralistas ao longo da primeira temporada, mas é na quarta – a última temporada de Doherty -, que o seu arco narrativo realmente evolui, surgindo como uma figura complexa e problemática, vista por muitos como o protótipo da miúda boazinha da província que se deixa levar pelo ambiente que encontra na grande cidade.
A série, criada por Darren Star e produzido pelo prolífico produtor Aaron Spelling, tornou-se um sucesso instantâneo assim que estreou na Fox em 1990. 90210 transformou Doherty e os colegas no género de celebridades a que os tabloides se colam mal se apercebem que o enredo ficcional é apenas uma moldura para mergulhar na intriga que se desenrola nos bastidores, tendo Doherty ficado depressa prisioneira da imagem de alguém que, limitando-se a viver a vida normal de qualquer jovem da sua idade, via cada detalhe aumentado e explorado numa narrativa que fez dela essa ‘cabra’ fora de controlo, entrando numa espiral de rumores e escândalos, que não mais a deixaria em paz.
Como tantos dos atores da sua geração, Doherty viu-se engolida pelos cabeçalhos, numa altura em que a pressão e atenção dos tabloides, precisava alimentar os rumores de disputas entre membros do elenco, que assim eram instigados e amplificados, e é natural que isto causasse uma tensão constante entre os atores, levando a que Doherty fosse afastada da série no final da quarta temporada, em 1994. Duas décadas mais tarde, Tori Spelling, a filha do produtor, e outra das estrelas da série, assumiu num especial que tinha pedido ao pai para despedir Doherty. Esta conseguiu, apesar de tudo, refazer-se desse abalo, tendo sido poupada à perda de audiências que acabou por determinar o fim da série. Tendo conseguido papéis nas comédias de Kevin Smith: Mallrats (1995) e Jay and Silent Bob Strike Back (2001), soube manter-se no elenco que realmente conta, e sair favorecida face aos antigos colegas. Em 1998, regressou à televisão na série Charmed como a mais velha de três irmãs bruxas, contracenando com Alyssa Milano e Holly Marie Combs. Mas já não sabia viver deixando o drama para os guionistas, e tratou de arranjar confusões nos bastidores, a ponto de ser uma vez mais posta a correr ao fim de três temporadas, sendo substituída por Rose McGowan.
Passaria a década de 2000 a tentar recuperar a sua imagem, reconhecendo que perdera o pé e se deixara manipular pela imprensa, isto sem abrir mão daquela atitude desafiadora que fez dela um ícone, assumindo o seu lado sacana, e ficando sempre longe do culto das dondocas moralistas. Mas tudo o que conseguiu foi provar que era um produto daquele consumo de intrigas, e acedeu a protagonizar um reality show bastante fraquinho em que ajudava mulheres a dar com os pés aos parceiros. Em 2008, ainda tentou encarnar uma vez mais Brenda Walsh, na reinicialização da série 90210, algo que apenas serviu para vincar o quanto aquela geração ficou retida como insetos no âmbar da imagem de uma juventude perdida, debatendo-se entre a nostalgia e o ressentimento.