Pressa, cidade, sombra e desejo (ligações entre Rilke, Virilio, Ritts, Quignard…)

When I was in my mother’s womb Social structure seemed a simple thing Gang of Four

1.

«Colette escreveu: os seres a quem um mal progressivo controla o tempo dizem em voz alta: “Estou com pressa”, em voz baixa: “Estão a perseguir-me”» (Quignard).

A pressa é ter-se convertido numa presa do presente. Trazer o medo bem para dentro do quotidiano e dos gestos, por um qualquer benefício material, por uma qualquer fome de vento. A farsa com que se esconde um sacrifício em nome do colectivo, já totalmente esquecidos. «O que assim te escapa é mais próprio de ti», dizia Rilke, atingindo com brevidade e acutilância o cerne da ansiedade. Estou com pressa, sou moderno, não me chateies. A auto-suficiência é, tantas vezes, a palavra com que expressamos o pânico assédio: que outros existam, que incluso nós existamos. A vida assenta em bases animais muito claras, no susto provocado por estar só e demasiado perto de morrer. O descanso desta perseguição é o aborrecimento comercial, da fase linguística e atmosférica. Convertida na narrativa altamente vendida, estrídula, dos vencedores.

2. 

«Tudo quer pairar. Circulamos pesados,

sobre as coisas nos colocamos, com os pesos encantados;

oh que mestres devoradores somos para as coisas sem ânsia,

porque são capazes de uma infinita infância» (Rilke, Sonetos a Orfeu, trad. Maria Teresa Dias Furtado)

A velocidade como princípio de libertação do peso, mas também agente da catástrofe.

Aquela com que nos dedicamos a ler, a escrever, a dançar, a saltar, a ser mortal.

E a outra, a velocidade da cidade em que nenhum olhar existe e se sucumbe ao poder. Velocidade em que se engendram desigualdades sociais, económicas, políticas: todo o poder vem da velocidade, poder dromocrático, «toda a sociedade é uma sociedade de corrida», explica Virilio na Ciberpolítica do pior. O poder da nobreza era, por exemplo, assente na cavalaria. Poder que hoje advém da velocidade cibernética, no modo rápido como se comunica, como se vende, compra, como se faz saber instantaneamente de novas leis em vigor, como se instiga o desejo em torno de certos comportamentos, como se dirige (o termo cibernética provém do grego kubernân, «dirigir», ressalta o filósofo francês) a força vital e a atenção para certos eventos mass-mediáticos, etc.

Na cidade circulam pesados porque ausentes do seu próprio mundo. Mas a cidade real é outra, a concentração na grande metrópole virtual. Aqui se sincronizam o pensar, o ver, o sentir, ficando a atenção em fanicos. Sem ela não há outro, muito menos louvor do outro – só quando louvamos somos justos, diz outro verso de Rilke. O estreitamento do mundo (a rapidez nas viagens, comunicação…) implicou uma ejecção do corpo: a expansão gigante do território significa uma abstracção inconcebível do horizonte limitado do nosso corpo mortal. Demos como exemplo os modos fantasmagóricos de cibersexualidade. O longínquo lança o existir numa leveza etérea e insuportável. «A redução do mundo a nada implicou a redução do corpo a menos que nada» – daí aquelas personagens de Ballard e Cronenberg tão obcecadas com despertar, dilacerando o próprio corpo. Finalmente sentir, no seu extremo-limite.

Quando numa qualquer repartição nos dizem para mandar um e-mail, estão a declarar que a nossa presença não tem relevância. Desapareça!, vá para longe, o longe desalojou o aqui em comum que constitui a cidade. A cidade «desintegrou a comunidade dos presentes em benefício dos ausentes – ausentes abandonados à Internet ou ao multimédia». E são justamente os expulsos da cidade virtual os que habitam e erram pela cidade concreta, que proclama o outro como ornato ou peça de uma luta, essa que a pressa reclama.

Observou Agustina a respeito da juventude no pós-25 de abril: «não iludiam nunca a desonestidade dos seus meios de luta, mas tomavam-na como uma burla e uma diversão» (Crónica do cruzado Osb, 1976). De repente, uma frase de Agustina obriga a uma paragem grande, a rondá-la para tentar entender o que ela é, sem nunca a tocarmos.

3. 

O que avulta do presente é o desaparecimento – em particular, do horizonte, do caminho, dessa ficção apagada, tal como o elevador esconde a escada. No Renascimento, aponta Virilio, o mistério consistia em aparecer: esculturas, pinturas… Aclarando que a imagem é sempre ausência de objecto, representação em cera do rosto desaparecido do pai. Aparição da ausência, não desaparição redobrada do ausente.

Mas há outros espectros, outras alucinações. Conta Quignard que o termo hallucinari era de uso entre os romanos ainda que de origem desconhecida. Entre os inuítes, allu «designava o buraco que as focas perfuram na superfície espessa do bloco de gelo e mantêm ao longo de todo o dia e toda a noite para poderem respirar». Acrescenta que o termo significa também ‘olhar’ para este povo esquimó. Alucinar a linguagem, misturar a fúria das imagens do sonho com a vontade mais ordeira da vigília, atribular os passos e os gestos, a realidade mais clara e óbvia, desacatar injunções e limites, eis modos humanos de respirar.

4. 

Desprezamos as coisas sem ânsia, o reencontro com o antigo da não-dissociação. «Todos estivemos associados na nossa origem a uma beatitude vivente» (Quignard): desejar como reconhecimento, emergir em acto, de um paraíso anterior.

Muito longe as nossas cidades de serem esse espaço em que a arquitetura se torna fim da arte, «derradeira passagem para a realidade» (Bégout). De certo ponto de vista, o surrealismo também foi o exercício do fim da arte e do artista: o fim não era a arte, mas que ela reconfigurasse o viver, desse nova cor a vidas mutiladas.

5.

No número 10 da Electra, encontra-se uma fotografia de Herb Ritts, Jackie Joyner-Kersee, Point Dume, 1987. Um corpo atlético de mulher salta, no que parece salto em comprimento, triplo salto; câmara de ângulo frontal. Plano ligeiramente picado, porque interessa menos a pessoa (cujo rosto está fora de enquadramento) e mais a sua sombra. O corpo rígido e forte, funcional, o salto menos arcaico e espontâneo, mas segundo regras e técnicas que o elevam. Mas a sombra, quanta graça! Um corpo mais alto e aéreo deitado na terra do que aquele mais acima sobre o ar! Dar mais atenção à nossa sombra.

E todavia, assinala o poeta colombiano Luis Vidales: «Vinte anos tive e outra sombra tive». Também a sombra ganha peso, perde graça, quando o medo de cair se impõe à vontade de saltar.

Ou seria essa sombra mais pesada então?

Em certos dias, é como se a sombra fosse o par, o duplo, apenas para dar a garantia de que o céu ainda existe e sabe escrever.

6. 

«Pensar como se nunca se tivesse pensado. A turbulência do começo, não consigo prescindir dela» (Elias Canetti).

Lançar uma palavra à página em branco para iniciar qualquer coisa, para «quebrar a impaciência do aqui», refere Quignard, para dar expressão e ritmo a impulsos.

O desejo como desejo de começo, de continuação, menos como ânsia de um fim. O fim do desejo como asco de viver, explica, aliás, Quignard no violento e lúcido e belo Desarçonados, publicado pela Cutelo. Uma estranha confluência dos contrários: «No instante da sua realização, a reprodução da vida des-encadeia-se e des-vela a sua face de morte». A voluptuosidade como essa disseminação ansiosa do fim, inoperância, fim de festa. O tédio é aspiração demasiado ávida, desejosa do fim, é não querer viver.

O real está privado do possível, num quadro em qualquer essência avulta do existente e não do devir: que o sonho se mantenha sonhado, passivo. O niilismo é, portanto, a incapacidade de desejar. Mas não é da natureza humana desejar, pois defender-se sozinho é uma tentativa traumática desde o nascimento desamparado, argumenta Quignard, o que faz com que o humano opte pela sobrevivência e pelo poder, pela adulação da violência colectiva sem limites. Preservando-se da inteligência em favor do bom senso, da explicação em benefício da réplica: «What I know fills me up / It is an everlasting cup / What I believe will never change / My consolation for the night» (Gang of Four).

O termo antigo recuperado pelo tradutor, Diogo Paiva: os desaçornados, todos os caídos do arção, os caídos do cavalo, os levantados com nova fúria de viver. Em parte, a obra é um catálogo reflexivo de muitos que mudaram de vida após se terem cruzado com uma tragédia. É ainda sobre cavalos que não suportam nenhum arção.

7.

Um último verso de Rilke, irónico em torno da tradição de canções sobre o tema e lúcido quanto à importância de resistir, à importância da coragem e das possibilidades de um corpo: «Se beber te é amargo, sê tu o vinho».