Morreu com a Volta à França, ele que foi tanto da Volta à França. Falo de Raphaël Géminiani, filho de Giovanni Géminiani, um italiano que tinha uma fábrica de bicicletas em Lugo, na Emilia-Romagna, província de Ravenna, A Bela, cidade onde viveu também, ‘in illo tempore’, Gioachino Rossini, um dos mestres da ópera, o autor de O Barbeiro de Sevilha, de La Cenerentola, de Guilherme Tell. No final da década de 1910, o fascismo crescia em Itália com a firmeza dos sem escrúpulos. Giovanni era um homem que prezava a liberdade e que se recusou a criar os filhos num país entregue aos bichos. Por não calava as injustiças, tascaram-lhe fogo à fábrica e viu-se no beco da pobreza. Saltou a fronteira. Instalou-se em Clemont-Ferrant, na região da Auvergne-Rônes-Alpes, e abriu uma oficina de bicicletas. Os velocípedes eram a sua paixão e os filhos herdaram-na na intimidade do sangue. Angelo, o mais velho, tornou-se rapidamente num excelente corredor, apesar de jamais ter dado o passo em frente nas escadas do profissionalismo. Gostava de ser amador, de participar nas provas que lhe agradavam e desprezar as outras, tinha uma vida preenchida e não se dispôs a dedicar-se somente a um capítulo dela. Raphaël, que já nasceu em França, a 12 de junho de 1925, abandonou a escola aos 12 anos e foi trabalhar com o pai na oficina. Cabia-lhe a tarefa de fazer rodas.
Vieram os alemães e o Hexágono ficou invadido. Mantinha a sul, numa vergonha amostra de independência colaboradora, o governo de Vichy. Mas as corridas de bicicletas não foram interrompidas pela brutalidade infame dos nazis. Raphaël ansiava ser como o irmão. O pai, que precisava dele na fábrica, procurou desiludi-lo: «Olha-te ao espelho e diz-me – alguém pode ser corredor com essas perninhas fininhas que tens. Deixa-te disso e trabalha. O Angelo que corra que tem corpo para isso». Pela primeira vez, o jovem Géminiani esteve-se nas tintas para a palavra paterna. Com 16 anos já corria e venceu a primeira etapa de uma prova recém-criada que levava o nome de Pas Dunlop. Giovanni rendeu-se à força de vontade do seu mais novo. E Raphaël reconheceu-o: «O meu pai ensinou-me muito. Explicou-me que, em subidas, só deveria atacar com a máxima força a, no máximo, 15 quilómetros do final. Percebi que tinha razão».
Depois da II Grande Guerra, Raphaël Geminiami ganhou outra ambição. As provas amadoras não o satisfaziam. Tornou-se profissional em 1946. No ano seguinte participou no seu primeiro Tour pela equipa da Metropole. Foi um desastre. O calor tórrido que tomou conta do país nesse Verão não poupou a sua fraca preparação. Durante uma etapa, seco de sede, resolveu mergulhar a cabeça num bebedouro de vacas. Apanhou uma infeção na boca. Esteve internado e regressou a Clemont-Ferrant na sua bicicleta, pedalando molemente. Demorou dois dias a lá chegar. Mas não era um homem resignado. No ano seguinte voltou ao Tour, desta vez com a camisola da Southwest-Center. Corriam os rumores de que só tinham permitido a sua inscrição porque Giovanni untara as mãos de alguns responsáveis. Caiu em desgraça. Mas, em 1948, foi selecionado para a equipa de França e correu o seu terceiro Tour consecutivo. Estava de volta às graças do povo.
Raphaël nunca ganhou a Volta a França. Havia uma concorrência fortíssima que o manteve ao largo desse sonho: Jean Robic, Louison Bobet, Jean Plankaert, Federico Bahamontes, Gino Bartalli. Ficou em segundo em 1951, ganhando o Prémio da Montanha, a sua especialidade, e em terceiro em 1958, tendo ganho a Volta à Espanha em 1959. Patriota dos quatro costados, Géminiani insistia que, em qualquer prova, os franceses deviam ajudar-se uns aos outros independentemente das equipas pelas quais corriam. Em 1958, numa luta férrea com o luxemburguês Charly Gaul, outro trepador frenético, acusou publicamente o seu compatriota Bobet de lhe falhar na camaradagem durante a tremenda tempestade que assolou a 21.ª etapa do Tour, entre Briançon e Aix-les-Bains. Charly foi o primeiro e recebeu os louros em Paris. Raphaël não se calou. Não era a sua forma de estar na vida e, por causa disso, muitos no pelotão não gostavam dele. Acusou Louison de ser um Judas. Estávamos no dia 16 de julho. No dia 26 de junho, em Bruxelas, onde teve início a 1ª etapa, um fã oferecera-lhe um burro. Deu-lhe o nome de Marcel, por causa de Marcel Bidot, o selecionador que não o chamara mais para a equipa de França. Talvez criasse mau ambiente. Morreu agora, ao 99 anos, no dia 10, enquanto a Volta a França passava pelas estradas do país, precisamente por Auvergne. Alguém disse, na hora do adeus: «C’est vraiment l’acteur principal de la légende du cyclisme mondial de l’après-guerre». Ator é uma palavra forte. Fica a soar na memória.