Após décadas de subfinanciamento crónico, que fizeram da Cultura um sector paraplégico – ou em endémica penúria –, incapaz de oferecer condições dignas de trabalho às suas instituições e estruturas, e que reduziu os profissionais (das artes do espectáculo, do audiovisual, das artes visuais e da criação literária, sem esquecer os técnicos) à triste condição de pedintes, o novo ambiente político afigura-se favorável a uma mudança de página. Um fulgurante futuro parece aguardar a Cultura em Portugal. Dinheiro não falta. A ocasião é propícia para todos nós.
Na semana passada, Pedro Adão e Silva, ex-ministro da Cultura de António Costa, afirmou ao Expresso que milhões afluíram aos cofres do Ministério da Cultura. Há tanta verba, disse ele, que a nova ministra, Dalila Rodrigues, poderá montar um “programa ambicioso” para as Comemorações do Quinto Centenário do Nascimento de Camões. Excelente!
Para sermos justos, portanto, devemos reconhecer que a decisão do Governo da AD se insere numa dinâmica que vem do anterior Executivo socialista. Vejamos por partes.
O XXIV Governo, liderado por Luís Montenegro, tomou posse no dia 2 de Abril de 2024.
Na véspera, 1 de Abril, a Estrutura de Missão para as Comemorações do Quinquagésimo Aniversário da Revolução do 25 de Abril assinou um protocolo de apoio financeiro, no valor de 450.000 euros (quase meio milhão de euros), com a Fundação Centro Cultural de Belém, destinado a suportar os custos de planeamento e produção das actividades do Festival “FeLiCidade” (assim mesmo, com aquelas maiúsculas a meio da palavra), o qual decorreu a 4 e 5 de Maio deste ano. Impressiona, não impressiona? Afinal, com que frequência um concurso ou um festival são dotados com quase meio milhão de euros para apenas dois dias de actividades?
Cheio de optimismo, fui ter com um grupo animado de amigos que se costumam encontrar na esplanada da pastelaria Galão. Levei-lhes a boa nova: os ventos da política são favoráveis à Cultura.
Contrariamente ao que estava à espera, fui escarnecido. Gozaram todos com a minha “comovedora ingenuidade”. Sofri um fogo cerrado de críticas por parte de indivíduos (cujos nomes verdadeiros não denuncio) que julgava excessivamente instalados no sistema e na prosperidade.
Perguntaram: “O Executivo do PS, acabado de perder as eleições legislativas de 10 de Março e apenas dois dias antes de o novo Governo da AD começar a governar, já com a nova ministra da Cultura anunciada, assinou um protocolo no valor de 450.000 euros, para serem gastos num programa atravancado, organizado em tão curto prazo e realizado em apenas dois dias de actividades no CCB? O governo pegou em meio milhão de euros, uma obscena fortuna, e o festival fez-se sem escândalo e sem sobressalto? E foi tudo varrido para baixo da indiferença geral?”.
Tentei balbuciar algumas palavras, mas fui interrompido. As questões multiplicavam-se: “Quem decidiu numa matéria que envolve meio milhão de euros? Quem chamou a si o assunto? Foi Maria Inácia Rezola, a Comissária Executiva da Estrutura de Missão para as Comemorações do quinquagésimo aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974? Foi Pedro Adão e Silva, o então ministro da Cultura? Foi António Costa, o primeiro-ministro demissionário? Quem é que foi o responsável, politicamente, pela decisão? E de quem era a direcção do Festival?
“Da Aida Tavares”, respondi, acamando o cabelo com uma mão.
“A proeminente Aida Tavares? A mesma que foi nomeada, em Dezembro último, como nova directora artística para as Artes Performativas e Pensamento do CCB, seis meses depois de sair da direcção do Teatro São Luiz e pouco tempo depois de o primeiro-ministro António Costa se ter demitido (7 de Novembro de 2024)? A mesma Aida Tavares que foi nomeada para o Teatro São Luiz, em Janeiro de 2015, após a duvidosa anulação do concurso para novo director artístico, de cujo júri fazia parte o seu companheiro íntimo, Miguel Honrado, ex-presidente do Conselho de Administração da EGEAC, do Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II e ex-secretário de Estado da Cultura do PS?”.
“E os curadores do Festival?”, perguntou o Álvaro, um indivíduo cinzento, sem brilho, com ar prematuro de funcionário público (trabalha como conservador de museu).
“É uma equipa”, respondi. “Inclui a Anabela Mota Ribeiro, o André e. Teodósio, o Gonçalo Riscado, a Nádia Yracema, a Sara Carinhas, o Tiago Bartolomeu Costa e a Madalena Wallenstein. Mais esclarecida curadoria não podia haver. E o programa até era bem interessante”, observei.
Entretanto, o Fernando sentou-se e, ajudando à festa, perguntou: “À fiel e prestável Anabela? A uma garimpeira de subsídios públicos como ela? Que durante anos foi co-curadora, com o André e. Teodósio, do projecto ‘Estar em Casa’, no São Luiz da Aida Tavares? Ao Tiago Bartolomeu Costa, o comissário do ciclo ‘Mais um Dia’, também no São Luiz? À Sara Carinhas, a responsável pelo ‘Ciclo de Leituras Encenadas’ e pelo projecto ‘Última Memória’, ambos, também, no São Luiz da Aida Tavares?”
Seguidamente, o Fernando procurou na Internet a página do projecto “Estar em Casa”. Começou a ler: “é um evento concebido por Anabela Mota Ribeiro e André e. Teodósio para a ‘okupação’ do São Luiz”. Interrompendo a leitura para soltar umas risadinhas, prosseguiu: “São Luiz, a casa do país com mais dourados na sala” ou “Há dezenas de pessoas que aceitaram estar, algumas prometeram trazer mantas para os joelhos e chá de limão. (…) Está convidado! Só não vale levar pantufas”.
Mas a melhor parte da programação, segundo o Fernando, eram as aulas do Nuno Artur Silva a explicar o que é a “maluquice”. Estalaram fortes gargalhadas, fazendo tremer os copos que descansavam, em equilíbrio precário, sobre a mesa.
Era demais. Respeito a opinião alheia, sou tolerante, oiço as críticas, mas aquilo era demais. Defendi, em primeiro lugar, que Aida Tavares se rodeou de uma equipa tão profissional quanto da sua confiança pessoal, com quem já tinha trabalhado do Teatro São Luiz. Isto é perfeitamente normal!
“E uma das primeiras coisas que a Aida faz é catapultar os amigos, do São Luiz para o CCB? Não há outros curadores, com outros métodos, com outras ideias?”, contestou o Fernando. “Assim também eu faço carreira nas artes e letras. A Anabela, o André e a Aida encostam-se uns nos outros. Confirmam-se e legitimam-se mutuamente”.
“Não sei. O que sei é que a Anabela é uma mulher prestimosa e desinteressada, profundamente preocupada com o aprimoramento cultural dos portugueses, projecto a que tem consagrado a vida. Além disso, é uma programadora de grande experiência, com um longo currículo nesta área”, continuei, para que não houvesse dúvidas quanto à minha profunda admiração e sincero respeito pelo trabalho da Anabela Mota Ribeiro.
“E o que tens a dizer de todo aquele trabalho, de toda aquela canseira para atrair as atenções e continuar no circuito da fama? As coisas que ela escreve no Facebook são de ir às lágrimas: ‘Machado de Assis e água de coco. Pessoa que não sabe nadar não resiste a Ipanema, aos Dois Irmãos, ao ambiente carioca, à ideia de ler o Memorial de Aires e a Natalia Ginzburg na praia, munida de protector 50, sacola FLIP, o seu boné da Universidade de Coimbra (a pessoa é membro do Conselho Geral e não esquece que o seu Brás Cubas cursou Direito em Coimbra: outro clássico)’.”
Enquanto lia, o Fernando foi mostrando a fotografia que acompanhava o texto: Anabela Mota Ribeiro perfeitamente enquadrada, sentada nas areias da praia do Rio de Janeiro, numa cadeira dobrável, com um boné azul e um livro de Machado de Assis numa mão, e uma água de coco na outra, soltando uma gargalhada, irradiando uma simpatia natural. Realmente magnífica!
Todas as minhas energias vitais se ergueram para protestar contra os comentários depreciativos sobre o estilo de vida da Anabela Mota Ribeiro. Resumi as suas credenciais como jornalista, escritora e programadora cultural, para depois concluir, dizendo:
“A Anabela Mota Ribeiro é uma grande figura cívica e tem importância bastante para gozar de certos privilégios e imunidades que a distinguem dos restantes profissionais da Cultura. E é uma estrénua defensora do Estado social. Para ela, o Estado social é ‘o principal trunfo para combater a desigualdade e os problemas da interioridade’. De resto, tem-se mostrado sensível à dor dos fracos, dos humilhados e dos mais pobres, os que sofrem as dificuldades da falta de dinheiro, como o demonstram claramente as cenas da Vanessa e do Franklin, os arrumadores de carros do Príncipe Real, n’O Quarto do Bebé [o primeiro romance de Anabela Mota Ribeiro, um livro extraordinariamente importante para mim e do qual não me consigo separar, tenho sempre presente o seu fio narrativo]. A Anabela é das que ‘acreditam que da discussão, do encontro, nasce a luz, se avança’. Toda a gente me diz, de resto, que ela nutre um amor imoderado pela Cultura, que acredita no poder de redenção da Arte. E a forma genuína como se tem indignado contra as desigualdades de oportunidades, as injustiças, as arbitrariedades, deveria merecer o vosso acordo unânime. Tanto a Anabela como o André e. Teodósio, tanto quanto sei, são receptivos às críticas e às queixas. E a capacidade que ambos têm para rir de si próprios é uma das coisas que sempre lhes admirei. Os dois sempre foram de esquerda, como nós. Estão do nosso lado da barricada. Criticá-los só serve para dividir os progressistas e a esquerda. Além disso, não nos cabe a nós dar lições à Anabela ou ao André”.
Quando as coisas pareciam começar a correr melhor e eu me sentia mais cómodo e relaxado, deu-se o nefasto aparecimento de mais um amigo, o Álvaro, comissário da TAP, um homem vivido e multidivorciado. Meteu também a sua colherada na discussão:
“Estão a falar do André Teodósio, o homem do Teatro Praga?”.
“Sim. Do André e. Teodósio e da Anabela Mota Ribeiro, que estão a ser alvo de ataques de uma torpeza e grosseria inexcedíveis”, respondi, levantando uma das pernas das calças para coçar o tornozelo direito.
“Os dois têm colaborado estreitamente no São Luiz…”, disse o Álvaro.
“Sim, já falámos disso. Durante a direcção artística da Aida Tavares, os dois organizaram, no São Luiz, o projecto ‘Estar em Casa’, com sessões em 2016, 2019 e 2021”, informou o Fernando. “O João estava quase a dizer que a Anabela e o André deviam ter um busto ou uma estátua numa praça ou numa rotunda…”, acrescentou, rindo alto e em bom som.
“Estas coisas são muito mais simples do que parecem”, interveio o Álvaro, arregaçando as pálpebras. “Para que a Aida Tavares e a Anabela Mota Ribeiro não entrassem em depressão, visto que o PS ia deixar de mandar na Cultura, o Governo do António Costa transferiu uns milhões para sítios como o CCB, para os distribuir rapidamente pelas clientelas, antes que o Executivo da AD entrasse em funções. Mas há alguma dúvida sobre isto? O nome do festival até está bem-apanhado: meio milhão de euros são uma espécie de felicidade. Sobretudo para quem faz carreira à custa da intimidade dos contactos nos salões mundanos da política e da cultura. Com meio milhão de euros é possível fazer e devolver muitos favores, contentar facções, criar ou reforçar alianças. Querem apostar como a Anabela já pediu audiência à nova ministra da Cultura? Que já começou a cerimoniar com os novos membros do Governo, no ambiente pouco salubre dos jantares e dos beberetes dos poderosos?”
“Mas essa Anabela não recebe dinheiro do Estado que lhe chegue?”, perguntou o Fernando, engolindo de um trago o café. Depois, entregando-se ao pecado da ira, começou a falar de assuntos desagradavelmente delicados de tocar: “Quando é que a proposta desse festival foi apresentada, oficialmente, à Estrutura de Missão das Comemorações do 25 de Abril? Que consultas foram previamente realizadas? Quem decidiu numa matéria que envolve cerca de meio milhão de euros? Foi a Rezola? Foi o portuguesíssimo Adão e Silva? Foi o António Costa?”
“Corre que foi o Adão e Silva que impôs o festival à Rezola”, disse o Alberto, acabado de chegar, vindo não se sabe de onde, semeando o caos de repente, com aquele ar de quem só quer participar tangencialmente na discussão.
O Alberto é jornalista reformado, do tempo em que as redacções eram desarrumadas por excelência, com papéis por todos os lados, cafés entornados, telefones fixos a tocar, pés em cima das secretárias e névoas de fumo de tabaco pairando por cima das cabeças.
“Como é que sabes? Tens factos e provas? Ou é só mais um boato?”, perguntei, levantando as sobrancelhas, achando difícil de acreditar naquela informação.
“Fontes geralmente bem informadas”, respondeu o Alberto, enigmático.
“Dou pouco crédito a esse tipo de fontes. Histórias como essas representam as piores coscuvilhices do nosso país”, declarei claramente e sem rodeios.
Ignorando-me ostensivamente, o Fernando começou a descrever o Adão e Silva e o assessor Ivan Nunes metidos no carro oficial, a fazer o trajecto do Palácio da Ajuda para o Comando Geral da GNR, no Largo do Carmo, onde está instalada a Estrutura de Missão.
“Esse Ivan é o da Política XXI, o que era enteado do José António Pinto Ribeiro, o marido ou companheiro da Anabela Mota Ribeiro?”, perguntou o Alberto, com um sorriso de troça.
“Sim”, respondeu o Álvaro, ligando-se à Internet. E, prosseguindo o seu discurso sem interrupções, disse: “Quando esse Pinto Ribeiro foi nomeado ministro da Cultura, o Público, em 2 de Março de 2008, falava dessa ligação familiar: “O enteado Ivan Nunes, 34 anos, que com ele viveu até aos 20, ficou ‘completamente surpreendido’. ‘Liguei o telemóvel às cinco da tarde e tinha umas 20 chamadas e várias mensagens a falar do ministro da Cultura. Liguei a um amigo e perguntei, ‘Ouve lá, quem é o ministro da Cultura?’ Ele disse: ‘É o teu padrasto’”.
Depois, esticando muito o pescoço, completou, com voz tensa: “O Pinto Ribeiro, antes de ser nomeado pelo primeiro-ministro José Sócrates, pertencia ao conselho de administração da PT Multimédia e da Fundação Berardo. Esteve envolvido nas negociações entre o Estado e o Berardo. Segundo os jornais da época, o acordo para a criação do Museu Berardo, assinado em 2006, desprotegeu a posição do Estado e criou condições de excepção”.
“Lembram-se da confusão dos dois Pinto Ribeiro? Dizia-se que o Sócrates se tinha enganado. Que a intenção dele era convidar o António Pinto Ribeiro, o director artístico e curador da Culturgest e da Gulbenkian, e que, por engano, telefonou para o advogado José António Pinto Ribeiro”, recordou o Fernando.
“Isso foi um boato lançado pelo próprio Sócrates. Desde o início que o Sócrates queria nomear o advogado, porque estava ligado à Fundação Berardo. O Sócrates é um mestre a lançar cortinas de fumo”, disse o Ricardo, num tom de voz despropositadamente alto.
Entretanto, continuando as suas pesquisas na Internet, o Fernando foi dar com o blogue de Augusto M. Seabra, o crítico a quem João Soares, quando era ministro da Cultura, prometeu aplicar duas solenes bofetadas.
“No dia 20 de Fevereiro de 2008” – começou o Fernando a ler – “dizia o Augusto Seabra: ‘José António Pinto Ribeiro tem a seu desfavor dois óbices de monta. O primeiro, é a sua proximidade a Berardo, sendo que era inclusive o elemento do Conselho de Administração da Fundação por acordo de ambas as partes – e foi péssima entrada na matéria o próprio Berardo ter feito saber que tinha sido Pinto Ribeiro a telefonar-lhe a comunicar a sua nomeação e que ele era como ‘um médico que dá consultas à borla’. A segunda é a sua proximidade como advogado ou mesmo sócio a algumas figuras artísticas ou empresas culturais das que têm maior capacidade de discurso e pressão pública”.
“Cuidado com o Pinto Ribeiro”, avisou o Ricardo, profundamente indignado, também ele agarrado ao smartphone. “É um homem de poderosas relações e de poderosas influências. Tem tentáculos em todos os lados, na Banca, na Cultura, na Política, etc. É um advogado que faz e desfaz como bem lhe apetece. É próximo do PS desde, pelo menos, os Estados Gerais do António Guterres. A Alexandra Carita, no Expresso de 29 de Janeiro de 2008, diz que ele é um dos grandes amigos do António Costa: ‘Não é alheia a esta ligação partidária a amizade com António Costa, presidente da Câmara Municipal de Lisboa’. E o Público de 2 de Março de 2008 diz que o Nuno Artur Silva – que participou no FeLiCidade como moderador de uma conversa qualquer –, é ‘outro grande amigo’ dele, quando ambos eram sócios das Produções Fictícias.”
“Que exagero!”, exclamei eu, pondo um ar zangado. “O Zé António é conhecido e reconhecido por ser um grande promotor da defesa de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Fundou e animou o Fórum Justiça e Liberdades, colaborou num livro interessantíssimo, organizado e coordenado pela Maria de Lurdes Rodrigues, a ex-ministra da Educação do primeiro governo do José Sócrates e actual reitora do ISCTE, onde ele defende a tese de que os direitos, liberdades e garantias pessoais são o fundamento das políticas públicas de justiça. O Zé António é um dos pilares da comunidade, um modelo de isenção e abnegação”.
“Zé António para os íntimos. Tão amigos que vocês são…”, disse o Álvaro, gozando comigo.
“É assim que a Anabela se refere a ele no romance…”, respondi.
“O Pinto Ribeiro é daqueles que conseguem converter todos os seus vícios em virtudes. Dizem que é dotado de uma capacidade de ilusão e embuste notáveis. E o Adão e Silva sempre foi um grande promotor da sua imagem, é um tipo que vive no culto da aparência, que dá demasiada importância aos seus gostos pessoais”, retorquiu o Ricardo, contorcendo-se na cadeira. “Já viram a fotografia dele na página da Wikipedia? O típico betinho de camisa azul e calças bege”, notou o Fernando, com uma ponta de malícia.
“Bom, mas a ser verdade que a realização do Festival foi uma imposição do Adão e Silva, é grave. Nunca fui à bola com o Adão e Silva. É um narcisista, um enfatuado e um arrogante. Parece um manequim da Rua dos Fanqueiros”, disse o Álvaro, de rosto iluminado, como se a imagem de Adão e Silva, imóvel na montra de uma loja, relampejasse na sua cabeça como um néon brilhante.
“E, se foi ele que impôs o Festival à Estrutura de Missão das Comemorações do 25 de Abril – acrescentou o Álvaro –, como é que fica a Rezola no meio disto tudo, ao aceitar, ou parecer que aceitou, um apoio financeiro desta magnitude, para apenas dois dias de actividades, pouco antes da tomada de posse do novo Governo? Será que a Rezola assinou o protocolo livre e espontaneamente? Se foi Adão e Silva, na sua vastíssima clarividência, que deu a ordem – como se diz nos mentideiros “geralmente bem informados” do Alberto –, isso significa que a Estrutura de Missão do 25 de Abril era uma extensão do Ministério da Cultura? Uma pequena província do PS?”.
“Não se esqueçam que o Adão e Silva saltitou das Comemorações do 25 de Abril para o Ministério da Cultura, e, recentemente, do Ministério da Cultura para a última página do jornal Público, onde tem mostrado a mesma fanática (e obtusa) devoção de sempre ao PS”, declarou o Ricardo, com a sua testa proeminente.
Estive quase para me levantar da mesa. Aquelas opiniões eram monstruosas. Deturpar factos e denegrir pessoas. Eu sou contra isso tudo. Julgava que os meus amigos também (gostava de pedir desculpa aos leitores pelo exagero, a insensibilidade e as injustiças em que incorreram os meus amigos, sobretudo em relação a José António Pinto Ribeiro e a Pedro Adão e Silva, que jamais fizeram dos cargos públicos o instrumento dos seus interesses particulares, cujo esforço e dedicação colocados em prol da comunidade não têm sido suficientemente elogiados).
A que atribuir tamanha inveja e ressentimento? Elaborei de imediato uma contraofensiva para sustentar a minha opinião sobre o assunto:
“Isso é altamente ofensivo. Há qualquer coisa de lastimavelmente mesquinho e amargo na maneira como vocês se referem ao Pedro Adão e Silva e às pessoas envolvidas no festival FeLiCidade. Só nas vossas mentes pervertidas é que o Festival é um problema. Foi um acto revolucionário esse da Estrutura de Missão reconhecer a importância de um Festival como o FeLiCidade. E o Adão e Silva – se a ideia foi dele – revelou possuir um espírito inovador e visão de Estado. Quanto a mim, meio milhão de euros parece-me até manifestamente pouco. Uns ridículos 450 mil euros? Acho que ele devia ter dado ainda mais dinheiro à Aida Tavares, à Anabela e ao André. Em vez de condenarem os custos do festival, deviam torcer para que houvesse mais festivais como o FeLiCidade. O próprio Adão reconheceu, há meses, que “a Cultura é um sector frágil e marcado pela precariedade. Precisamos de ter os municípios mais envolvidos, mais empenhados na cultura, precisamos de ter as regiões também empenhadas e envolvidas na cultura e precisamos também de ter mais privados na cultura. (…) isso vai ajudar a que tenhamos mais recursos na cultura” (Rádio Renascença, 21 de Março de 2024). Se querem saber, era até aconselhável a manutenção de Adão e Silva no Ministério da Cultura, mesmo num Governo da AD. Seja como for, só a comparação entre os custos do FeLiCidade e os custos de outras iniciativas da Estrutura de Missão, bem como de outros Festivais por esse país fora, é que se pode atacar o FeLiCidade. É neste estratégico ponto que as coisas se jogam”, proclamei, com crispada relutância.
O que fui dizer. De telemóveis nas mãos, começaram todos a pesquisar nas profundidades da Internet. Investigaram a Estrutura de Missão e os incontáveis Festivais que cobrem a nossa terrinha. Tudo aquilo, enfim, que lhes permitisse contrariar os meus argumentos e razões.
“Encontrei o Relatório de Actividades de 2022 da Estrutura de Missão para as Comemorações do quinquagésimo aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974. Diz que o orçamento da Comissão Executiva, nesse ano de 2022, foi de 1 167 801 euros, dos quais 605 309,00€ serviram para pagar as despesas com pessoal e 562 492,00 euros para despesas de actividade. Portanto, o FeLiCidade custou quase metade de todo o orçamento da Comissão Executiva naquele ano”, revelou o Fernando, franzindo a testa. “Depois, há os concursos”.
Apontando para o monitor do telemóvel, exibindo a página da Estrutura de Missão, iniciou a leitura:
“O concurso Arte pela Democracia foi dotado com um milhão de euros, para apoiar 45 projectos artísticos. O concurso Cinema pela Democracia teve 790 mil euros. Este último tinha um tecto máximo de 275 mil euros para a produção de longas-metragens de ficção e primeiras obras, e de 250 mil euros para séries de animação. Resulta de uma parceria com o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e está inscrito no Orçamento do Estado para 2023″.
“Quer dizer, para fazer filmes, coisas que permanecem e deixam lastro, apenas 790 mil euros”, interrompeu o Alberto, piscando as pálpebras.
“Pior. O concurso Ciência pela Democracia, destinado a apoiar “projetos de Investigação e Desenvolvimento (I&D) de natureza interdisciplinar e pluridisciplinar”, teve apenas 500 mil euros. O mesmo, praticamente, que um festival que durou dois dias. Reparem que este concurso contemplava também “projetos de tratamento arquivístico, de digitalização e de estudo de acervos documentais, bem como a criação de recursos educativos que se enquadrem na temática da construção da democracia portuguesa (história, memória e práticas democráticas)”.
“Que vergonha! Que vergonha! Há um ou dois meses saiu uma notícia dizendo que faltava dinheiro na FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia) para pagar bolsas de doutoramento e salários”, lembrou o Ricardo. “Podem comprovar isto. Veio em todos os jornais”.
“Há mais um concurso. O Escrita pela Democracia, que visa apoiar a escrita de obras de ensaio sobre o 25 de Abril e a construção da Democracia portuguesa. Este concurso foi contemplado com 60 mil euros, correspondente a oito bolsas no valor de 7500 euros cada. Portanto, para escrever um ensaio sobre o 25 de Abril e a construção da democracia portuguesa, cada investigador dispõe de 7500 euros”.
“E foi neste contexto, portanto, que o Governo de António Costa decidiu atribuir meio milhão de euros para um festival que ia durar dois dias?”, perguntou o Alberto, exibindo espanto e descontentamento. Parando depois para beber mais um gole da garrafa de água, continuou: “Expliquem-me, como se eu fosse uma criança de três anos, o que é que pode justificar este desequilíbrio entre o FeLiCidade e as outras iniciativas da Estrutura de Missão? E qual terá sido o entendimento estratégico que levou à decisão de fazer o festival? Ou melhor, como é que o Festival, em termos estratégicos, se enquadra no programa das Comemorações do 25 de Abril? Fez-se em função de que desígnio estratégico? Como é que se insere dentro das orientações dominantes da Estrutura de Missão? Quais as vantagens? Quais os efeitos culturais? Ou: que espécie de efeitos, a médio ou longo prazo, se esperava que ele tivesse? Fez-se em proveito de quê, ou de quem?”
Estabeleceu-se um silêncio expectante. Até que, timidamente encolhido na cadeira da esplanada, arrisquei dizer: “Talvez para ‘animação’ do sector da cultura. Não vejo nada de extraordinário nisso”. Do chão vinham os gemidos dos pombos, a debicar as migalhas do croissant do Álvaro.
“Não me interpretem mal: não estou contra as comemorações do 25 de Abril. Estou contra o uso abusivo dos dinheiros públicos”, sublinhou o Alberto, num tom amistoso. “É isso que me preocupa e devia preocupar-nos a todos. A Cultura é um sistema que está pouco orientado para o bem comum. O objectivo é obter dinheiro para uma casta de privilegiados com bons contactos. Às vezes, parece que as pessoas gostam de ser roubadas. É a injustiça e a desigualdade na distribuição do dinheiro e das oportunidades que tanto me perturba”.
“Cá para mim”, começou o Fernando, “trata-se, como sempre, de pôr a cultura ao serviço da propaganda. Há muito que o PS estendeu uma larga rede de influência e propaganda sobre a Cultura. E os artistas e intelectuais, atraídos pelo dinheiro e pelo prestígio, têm contribuído para exterminar o sentido crítico e a liberdade de pensamento. Dotados de competências críticas, as pessoas estão em melhores condições de denunciar as injustiças e pôr em causa os poderes discricionários [resolvi meter aqui a palavra “discricionários” para vos mostrar que o Fernando possui um vocabulário variado; a utilização de certos termos infunde nos leitores a convicção de que aquilo que estamos a dizer é importante, sério e verdadeiro]. Isto devia ser defendido a todo o custo. Não basta agitar princípios abstractos, fazer umas quantas menções rituais à importância da liberdade, do pluralismo e da autonomia, ou derramar aquele tipo de retórica inconsequente em que as pessoas da cultura são pródigas. É preciso reforçar a autonomia das opiniões, as linhas de pensamento fora do habitual, o olhar crítico sobre todas as coisas. Os políticos deviam mostrar-se mais atentos e mais implacáveis perante medidas lesivas do erário público, levadas a cabo por estes sabichões da Cultura. Numa época como a nossa, em que cada vez menos pessoas acreditam numa regeneração social, é indispensável que os governantes levem muito a sério o descontentamento crescente da sociedade civil, bem como o afastamento, cada vez maior, entre o cidadão comum e a classe política”.
“Chorei, verti algumas lágrimas. E, já agora, marijuana de borla para toda a gente”, disse o Álvaro, provocando uma gargalhada geral.
“E será finalmente instaurado o reino da Felicidade na Terra”, acrescentei, tamborilando com os dedos sobre a mesa. “Devias dizer isso no cimo de um monte, a contemplar a paisagem, ou a correr na praia, com os pés na água, ao pôr-do-sol, ao som de uma música para hipnotizar perus”.
“Fernando, os grandes princípios são uma coisa privada que requer um certo pudor”, juntou o Ricardo, com uma expressão indefinível no rosto.
“Deixem-se de graçolas. Aqui não se aprende nada. Vocês não alinham uma conversa de jeito. Falemos sério. Entre o início de 2024 e a tomada de posse do novo governo, quanto dinheiro recebeu a Estrutura de Missão? E será verdade, como se segreda por aí, que esse dinheiro já tinha o destino traçado pelo próprio ministro da Cultura?”, ripostou o Fernando, com os nervos excitados. Na esplanada, dois cães pegaram-se, fazendo subir ao céu, numa dança desvairada, uma poeira impalpável.
“A Aida Tavares, em entrevista ao Observador (3 de Maio de 2024), disse que “foi um financiamento que consegui e que coloquei em cima da programação que já estava. A programação de salas já está muito fechada e tem coisas fantásticas. (…) Este Felicidade é esse cartão de visita. A preparação tem sido muito feliz. O CCB tem uma equipa extraordinária. Toda a gente abraçou a ideia de fazer um festival num contexto em que já tínhamos uma programação. O facto de ter feito este festival em tão pouco tempo, que é uma loucura, é uma espécie de curso intensivo. Aprendi mais nestes quatro meses de trabalho com a equipa a produzir este festival do que se calhar daqui a um ano. Tenho uma noção muito mais clara do que é a estrutura, as pessoas, os interesses e como funcionam os fluxos de informação. É um presente. A partir daqui vai ser mais fácil.”
“Foi um financiamento que conseguiu? É o que ela diz? Um dinheiro que apareceu misteriosamente, vindo da Estrutura de Missão das comemorações do 25 de Abril? Recebeu, do pé para a mão, como por encanto, meio milhão de euros? Através de quem? Do Adão e Silva? Da Maria Inácia Rezola? Onde é que está a portaria que regulou a transferência desse dinheiro para o CCB? E o CCB? Não tem um orçamento próprio para estas coisas? Isto revela um profundo desprezo pela transparência. Nem antes nem agora nos foram dadas quaisquer satisfações. O Adão e a Rezola devem uma explicação”, disse o Fernando, num tom de desapontamento e raiva.
“E, pelos vistos, começaram a preparar o festival antes de o protocolo estar assinado. O dinheiro terá chegado ao CCB antes ou depois da assinatura do protocolo? Diz ela que a partir daqui vai ser mais fácil. Só se o novo Governo continuar a pagar meio milhão de euros para festivais de dois dias”, lembrou o Fernando, trémulo de fúria.
“Tomar a sério este país é enlouquecer. É sempre a mesma história e a conclusão é sempre a mesma: em primeiro lugar estão os compromissos, as ambições pessoais e os favores aos amigos, e só depois o interesse comum. Isto é uma aldeia, todos nos conhecemos uns aos outros”, declarou o Álvaro, movendo o gelo no seu copo de coca-cola.
“Conhecem aquele livro do Curt Meyer-Clason, o alemão que dirigiu o Goethe-Institut em Lisboa?”, perguntou o Fernando.
“Os Diários Portugueses?”, disse o Alberto, com os olhos castanhos a brilhar.
“Esse mesmo. É sobre o período em que viveu em Portugal, de 1969 a 1976. O Meyer-Clason morreu com 101 anos e fez traduções para alemão de vários autores portugueses e brasileiros. Traduziu o Carlos de Oliveira, o Eça de Queirós, o Cardoso Pires, o Jorge de Sena. Mas ficou mais conhecido pelas traduções do Guimarães Rosa. A versão dele, para alemão, do Grande Sertão: Veredas é um monumento”, explicou o Fernando.
“Tu não sabes ler alemão, como é que sabes?”, replicou o Álvaro, sentindo um prazer malévolo nas suas palavras.
“É o que todos dizem…”, defendeu-se o Fernando. “Ora, deixa-me a braguilha em paz!”.
“Tudo isso é muito interessante, mas não vem para o caso. Acelera, Fernando…”, interrompeu o Ricardo.
“Bom, como ia dizendo, o Meyer-Clason, nesse diário, conclui que somos todos parentes uns dos outros, que somos uma só família e que tudo está ligado a tudo. Do que ele observou nos sete ou oito anos que viveu em Portugal, constatou que somos um remoinho de intrigas e de disputas, ‘guerras de nervos, fome de poder e fomes’”, explicou o Fernando.
“Esse argumento já tem barbas! Serve apenas para que tudo fique na mesma. O espírito crítico morreu. Vinha agonizando há uns anos, mas agora está morto. Se nós, Fernando, somos os únicos que ainda conseguem ter algum espírito crítico, quando todos à nossa volta já o perderam, nós é que estamos mal”, declarou, pedante, o Álvaro.
“Isso lembra-me aquela anedota que li num livro do Luís Fernando Veríssimo. Parafraseando-a, pode ser contada assim: ‘A nossa Cultura tem uma tromba de elefante. Tem orelhas de elefante. Tem dentes de elefante. Tem rabo de elefante. Tem cor de elefante. Tem tudo o que os elefantes têm. Só não tem autocrítica’”, contou a rir o Alberto.
“O jornalista do Guardian, Oliver Bullough, num livro sobre os cleptocratas que têm roubado dinheiro no mundo inteiro, graças aos paraísos fiscais e a outros esquemas montados por advogados, diz que quando a corrupção atinge 90% de um país, já não é corrupção, é apenas a forma como esse país funciona”, notou o Ricardo, sentindo o palato seco pela quantidade de cigarros consumidos nas últimas horas.
“O dinheiro, na Cultura, vem de poucos sítios. Para conseguir o máximo desse bolo, é preciso entrar em esquemas, fazer fretes, andar em almoços e jantares, bajular este e aquele, promover-se, aparecer na televisão, conferenciar com os grandes. O facto de quase todos dependerem desse dinheiro, obriga-os a falarem bem uns dos outros. Não pensem que é uma maneira fácil de ganhar dinheiro”, interrompeu o Álvaro.
“Vocês estão a complicar tudo. A Cultura converteu-se num mero adereço promocional do turismo. As artes e as letras foram definitivamente incorporadas no negócio do espectáculo e do entretenimento”, voltou à carga o Fernando.
“Mas e os outros festivais, em comparação com o FeLiCidade?”, lembrou o Álvaro.
“O Bernardo é quem sabe dessas coisas”, disse o Fernando. E apontou para o Bernardo, contabilista numa Câmara Municipal, que vinha na direcção da nossa mesa. Sentando-se debaixo do chapéu de sol da esplanada, quis saber de que é que estávamos a falar. Depois de lhe explicarmos o âmbito da discussão, o Bernardo revelou que as empresas interessadas em produzir um festival têm de submeter uma série de papelada. Segundo ele, está tudo explicado no Código da Contratação Pública. Segundo o Código dos Contratos Públicos, quando o valor dos contratos é inferior 20 000 euros, faz-se por ajuste directo; até 75 000 euros, é necessária a realização de uma consulta prévia, com convite a pelo menos três entidades. Regra geral, define-se como principal critério a contratação de quem apresenta o orçamento mais baixo. Antes de abrir a consulta prévia, a empresa que se pretende favorecer tem de garantir que consegue o orçamento mais baixo de todos. Para isso, ela própria arranja duas empresas, não raro unipessoais, para apresentarem orçamentos mais elevados que o seu. É a realidade que temos. No caso dos festivais, que atingem valores acima dos 100 mil euros, tirando algumas excepções, deveria abrir-se um concurso”.
“Neste caso”, continuou o Bernardo, reclinando-se sobre a mesa para enfatizar ainda mais as suas explicações, “não foi necessária uma empresa de produção. O CCB é que produziu tudo. E só teve dois parceiros institucionais: a Estrutura de Missão das comemorações oficiais da quinquagenária revolução de Abril, e a redentora CPLP, cuja presença é apenas simbólica, porque dali não vem dinheiro nenhum”.
“Volto a dizer: vocês estão a complicar tudo. Isto é muito mais simples do que vocês pensam”, considerou o Fernando. “Este festival, com a ajuda do pretexto simbólico do 25 de Abril, foi apenas um episódio mais do longo historial de assalto ao Estado por parte do PS. Todo aquele dinheiro serviu para consolar os convidados que, durante aqueles dois dias, se acotovelaram nos espaços no CCB. É o instinto tribal do PS a funcionar. E, já se sabe, na Cultura, a diversificação e a rotação das elites é quase nula. Os que têm poder de influenciar os ministros, os presidentes de câmaras e os presidentes dos conselhos de administração ou os directores disto e daquilo são quase sempre os mesmos. Esses é que vão ao cofre do contribuinte para financiar as brincadeiras e as extravagâncias das Aidas, das Anabelas, dos Teodósios. Abaixo deles, estão os servos da gleba da cultura. Depois espantam-se que tanta gente tenha vontade de entregar o destino do país às messiânicas mãos dos charlatões do Chega. Andaram anos a promover a sonolência atávica da maioria da população, a esventrar o bolso dos contribuintes para distribuir dinheiro pelos amigos, pelo marido, pelo primo, pela filha, pela mulher, e agora dizem-se muito surpreendidos e escandalizados com a ascensão do Chega. Puta que os pariu!”, grunhiu o Fernando (quase conseguíamos ouvir o sangue dele vibrando e esguichando em todas as veias).
“Estou farto de ouvir esse argumento. Isso é de um simplismo tosco e não serve para explicar a ascensão do Chega. Quem quiser perceber a ascensão da extrema-direita na Europa, nos últimos anos, sugiro a leitura de um livro de Didier Eribon, Regresso a Reims. Está traduzido na Dom Quixote”, sugeri. “Mas, afinal, o que eu pretendia saber era este facto trivial: quanto é que custa a organização de um festival daquela dimensão?”.
“O Festival Literário Utopia, realizado em Braga, no mês de Novembro do ano passado – onde tu, João, participaste –, teve um investimento de 300 mil euros”, revelou o Bernardo.
“É verdade, participei numa conversa sobre biografias, com o José Manuel dos Santos. A Maria Antónia Oliveira, que também foi convidada, não apareceu”.
“Mas esses 300 mil euros serviram para financiar quantos dias?”, questionou o Ricardo.
“Onze dias de conversas, workshops, espectáculos, sessões com escolas, passeios literários, etc. Teve 100 convidados e 90 horas de programação, e foi visitado por mais de 12 mil pessoas”, esclareceu o Bernardo. “Mas atenção, segundo o site BASE, onde constam todos os contratos públicos, só 120 mil euros desses 300 mil euros é que foram custeados pelo Município de Braga. O restante deve ter vindo dos patrocinadores, como o dst group, o Pingo Doce, o McDonald’s, a Fnac e outros. Por acaso, está tudo muito bem explicado no site do festival, criado pela agência Book Company (eventos, formação e consultoria), da Penguin Random House. Tal como no FeLiCidade, as sessões do Utopia eram todas gratuitas”.
“Ok. E os outros festivais?”, perguntei.
“Há aqui outro onde tu estiveste, o Escritaria, que homenageou o Miguel Esteves Cardoso na edição de 2023. Foi produzido pela empresa Moléculas ao Rubro e custou ao Município de Penafiel, onde decorreu o festival, 103,701 euros. Pelo menos é o que consta no site BASE. Durou sete dias, de 23 a 29 de Outubro”, explicou o Bernardo.
“E o Festival Literário 5L – Festival Literário Internacional de Literatura e Língua Portuguesa –, da responsabilidade da Câmara de Lisboa?”, voltei a perguntar.
“O deste ano foi anulado, desconhece-se as razões. Talvez os jornalistas devessem investigar o que se passou. Desconfio que o Carlos Moedas terá algo a dizer sobre o cancelamento da edição deste ano. Mas a de 2022, pelo que diz aqui, ainda com direcção artística do José Pinho, teve um financiamento da Câmara de Lisboa de 115 mil euros. Decorreu entre 4 e 8 de Maio, ou seja, cinco dias de debates, mesas de autor, exposições, cinema, espectáculos de música e teatro, etc.”, clarificou o Bernardo.
“Quanto ao Festival Literário Internacional de Óbidos, o Folio, teve em 2022 um financiamento mais próximo do concedido ao FeLiCidade: 385 mil euros. Mas foram 11 dias – de 6 a 16 de Outubro de 2022 –, tendo como parceiros, além do Município de Óbidos, a Fundação Inatel, a Ler Devagar e a Óbidos Criativa, e apoios do Turismo de Portugal, Fundação Millennium BCP, Gulbenkian, Delta Café, Embaixada do Brasil ou Crédito Agrícola. Nele participaram 603 autores e criadores, realizaram-se 108 conversas e tertúlias, 40 apresentações e lançamentos de livros, 40 espectáculos e concertos, 21 exposições, 18 sessões de leitura e poesia, e houve 14 mesas de autores. Apesar de tudo, muito mais participantes, muito mais dias e muito mais apoios que o FeLiCidade. Neste caso, ao pagar todas as despesas do FeLiCidade, o Governo subtraiu aos privados funções que eles poderiam ter desempenhado. O que contraria a afirmação do Adão e Silva, que disse que ‘precisamos também de ter mais privados na cultura’”, acrescentou o Fernando.
“Alguém leu o pastelão que o Adão e Silva escreveu, no Público, sobre o João Barrento? No mesmo dia em que a sucessora na Cultura, Dalila Rodrigues, entregou o prémio Camões ao Barrento e fez o seu discurso? Deselegante, no mínimo”, defendeu o Álvaro.
“O artigo deve ter sido feito a partir do discurso que alguém lhe escreveu quando o Adão era ministro da Cultura. Como o Governo caiu e já não foi ele a entregar o prémio, aproveitou para o pôr a render no Público. Não se esqueçam que ele chegou a ser um dos colaboradores mais bem pagos da comunicação social. A empresa através da qual ele facturava todas essas colaborações, a Linha Justa Lda., teve em 2020 um volume de negócios de 108.642 euros. Corresponde ao total do que recebia, anualmente, da RTP, do Expresso, da TSF, da Sport TV e do jornal Record“, lembrou o Fernando.
“E, já agora, não se esqueçam que a companheira do Adão e Silva foi nomeada pelo próprio António Costa, em 2018, para a Comissão Directiva da Autoridade de Gestão do Programa Operacional Inclusão Social e Emprego”, disse o Ricardo, contribuindo para a desestabilização. “Não haveria ele de reproduzir no Público o relambório do Golpe de Estado na Justiça contra o António Costa”.
“Vocês parecem gente invejosa e mesquinha. Não nos desviemos do assunto. Sem gestos de audácia como o FeLiCidade, arriscamo-nos a ficar para trás, a desaparecer do mapa da cultura europeia e dos circuitos das grandes capitais. Se calhar preferem coisas como o Festival de Chocolate de Óbidos, que recebeu perto de 200 mil euros?”, contrapus.
“Vejamos, então. Quanto dinheiro é que o CCB deu a cada um dos curadores?”, avançou o Bernardo. “A minha experiência diz-me que os curadores destes festivais são altamente remunerados. Sei de alguns que ganharam mais de 20 mil euros”.
“Já foi publicado o mapa de execução financeira do festival, com os documentos de despesa e de receita arrecadada?”, perguntou o Alberto.
“Na Internet não existe nada. Ou então procurei mal. Segundo o protocolo assinado entre a Estrutura de Missão do 25 de Abril e o CCB, na cláusula terceira do ponto 5, era obrigação da Fundação CCB remeter à Estrutura de Missão, até 30 de Junho de 2024, um relatório com a execução financeira, onde devia constar a despesa executada, bem como cópia dos documentos de despesa”, esclareceu o Bernardo.
“Decerto que há uma explicação lógica para esse atraso, que desconhecemos”, afirmei. “É necessária alguma prudência”.
“O grande problema na Cultura não é apenas o que orçamentam. É o que executam depois das coisas estarem orçamentadas. São os atrasos na execução dos pagamentos atribuídos e, também, as demoras nos concursos. A Cultura não paga a horas, o que é um problema sobretudo para as estruturas pequenas, que não têm capacidade de contratar antes de serem pagas”, disse o Fernando.
“E não se esqueçam de outra coisa: qual o lastro ou o impacto social de um festival como o FeLiCidade? Que vantagens trouxeram aqueles dois dias? Que benefícios palpáveis trouxe à comunidade?”, perguntou o Alberto.
“Isso é impossível de mensurar”, respondi. “E mesmo que fosse, haveria que saber, em primeiro lugar, quantas pessoas foram ao CCB nesses dois dias e a que públicos chegou”.
“Na minha opinião, foi uma coisa autoconsumível e masturbatória, que se dissolveu quase sem deixar rasto”, defendeu o Álvaro. “Há algum estudo que explique qual o efeito multiplicador destes festivais?”.
“O modelo do Festival Escritaria, por exemplo, foi exportado para Cabo Verde e Angola. Em 2023, o escritor Germano de Almeida foi homenageado no Mindelo e Pepetela em Benguela”, disse o Bernardo.
“Os últimos inquéritos aos hábitos de leitura mostram que Portugal continua a ser o país que menos lê na Europa, é esse o impacto de festivais como o FeLiCidade. O Governo da AD devia ter duas prioridades estratégicas, reconstruir o sistema educativo e a classe docente, sem as quais não há política cultural que valha, bem como redefinir o papel do Ministério da Cultura”, determinou o Alberto.
Como ninguém ofereceu resistência a estas últimas afirmações, e como já tínhamos posto a conversa em dia, fechámos a nossa tertúlia concluindo que a Estrutura de Missão para as Comemorações do 25 de Abril, a FCCB e o ex-ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, deveriam prestar contas, revelando, até ao último cêntimo, como se gastou aquele meio milhão de euros, de onde veio esse dinheiro e de quem foi a decisão de transferir o dinheiro para aquela Estrutura de Missão e desta para o CCB. Até agora, além do Protocolo assinado entre aquelas duas estruturas, nenhum esclarecimento mais foi oferecido.
Sem estes modestos esclarecimentos, como poderei eu voltar a encarar os meus amigos? Como poderei eu trazer rigor a este breve episódio da história da cultura portuguesa, que ando a escrever?
João Pedro George