As compras para o jantar tinham ficado no carro e o carro tinha ficado ao sol. Estava um calor dos diabos, por isso a incursão teria de ser rápida, praticamente entrar e sair. Já algum tempo que me sentia atraído por aquela loja com vasos à porta, num edifício cinzento de gaveto em estilo art déco, junto à estação dos comboios. As letras por cima da entrada – ACT – fazem-me sempre pensar numa companhia de teatro; na realidade, são as iniciais de Associação Cristã de Tavira, uma espécie de REMAR, a associação de apoio social cujas receitas revertem a favor da reabilitação de pessoas marginalizadas.
O interior, como é habitual neste tipo de lojas, estava atravancado de móveis antiquados, alguns do mais piroso. O cheiro a mofo não engana: é o aroma inconfundível dos objetos abandonados e do reino do mau gosto. E, no entanto, procurando com cuidado, encontram-se artigos excelentes: copos, faqueiros, aparelhagens estéreo a funcionar e talvez até um ou outro móvel minimamente jeitoso.
Mas eu não estava li para comprar móveis. Contornando um aparador enorme de madeira escura vislumbrei uma pilha de cds com etiquetas que são sinónimo de qualidade. Arrebanhei uns quantos: Caetano Veloso, Glenn Gould a tocar Bach, Dinu Lipatti a tocar Schubert, a 5.ª sinfonia de Mahler na maravilhosa gravação de Bernstein, cuja capa eu não via há uns 20 anos, desde que a minha desapareceu. E ainda mais qualquer coisa.
Os livros é que estava mais difícil encontrar. Por fim, lá os localizei esquecidos atrás de um sofá desengraçado. Os dicionários do costume, livros de receitas e best-sellers obsoletos em língua estrangeira, nada que entusiasmasse. Alguns álbuns sobre as maravilhas da natureza com reproduções de má qualidade, compêndios de química, coleções desatualizadas. Mais best-sellers daqueles que os britânicos gostam de ler nas férias. Como toda a gente sabe, o Algarve está cheio de ingleses, o que neste caso era comprovado pelos casacos Marks & Spencer na secção da roupa usada.
Até que me pareceu ver, quase junto ao chão, algo que, pelo aspecto, podia interessar. Um livro de capa dura, a sobrecapa intacta reproduzindo uma pintura. Tratava-se de uma biografia do pintor austríaco Oskar Kokokschka, a quem Ernst Gombrich chamou «um dos grandes outsiders da arte contemporânea», hoje um clássico do expressionismo. Por coincidência, Kokoschka teve uma relação tumultuosa com Alma Mahler, mulher do compositor. Sobre esses três anos ela diria:«Nunca antes tinha experimentado tanto inferno e tanto paraíso».
Haveria mais alguma coisa que se aproveitasse? No meio de uns manuais que ensinavam a pintar a aguarela, paisagens ou rostos humanos, surgiu uma capa que ostentava:‘Unpublished Letters’ – cartas não publicadas. De quem? De Henri de Toulouse-Lautrec, o pequeno artista francês de origens aristocráticas que pintou a vida nos bordéis e cabarets de Pigalle e Montmartre.
Fui atendido por um senhor inglês, que pelos vistos gere a loja. Contou-me que reside cá há 40 anos e falou-me longamente, e sem papas na língua, dos encantos de Portugal e dos defeitos dos portugueses. Paguei oito euros pelos oito cds e um euro pelos dois livros. 50 cêntimos cada! E saí da loja a correr, porque tinha deixado as compras no carro, o carro estava ao sol, fazia um calor dos diabos e obviamente queria ir para a praia.